sábado, 1 de setembro de 2018

O mar de Cecília/ O mar de Rosinha


O mar de Cecília / O mar de Rosinha
            (Neide Medeiros Santos – leitora votante FNLIJ/PB)
           
                        Dorme, que eu penso.
                        Cada qual assim navega
                        pelo seu mar imenso.        
            (Cecília Meireles. Acalanto. In: Mar absoluto).

            “O mar de Cecília” (Editora do Brasil, 2017), de Rosinha, ganhou o prêmio de Melhor Livro de Poesia da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 2018.  Rosinha é o nome artístico de Rosa Maria Campos, arquiteta e ilustradora pernambucana que vem conquistado prêmios desde que decidiu se dedicar inteiramente à literatura infantil como escritora e ilustradora. Começou a carreira artística em Recife, ilustrando livros de Ronaldo Correia de Brito e Assis Lima, depois passou a ser requisitada para ilustrar e escrever livros infantis por editoras do sul e sudeste, hoje é nome consagrado no cenário da literatura infantojuvenil no Brasil e no exterior. A arquitetura perdeu uma arquiteta, a literatura ganhou uma escritora e ilustradora.  

            Em nota inserida na última página do livro “O mar de Cecília”, ela conta como surgiu a paixão pela poesia de Cecília Meireles. A primeira vez que leu um livro de Cecília tinha nove anos, um presente de seu pai.  “Ou isto ou aquilo” foi um “alumbramento” bandeiriano.   Ficou tão encantada que passou a levá-lo para todos os lugares dentro de sua mochila. Lia em voz alta os poemas para suas bonecas e escrevia alguns versinhos no seu caderno da escola. Agora chegou a vez de dialogar com a poeta do mar.       

            O título do livro está associado não apenas a “Mar absoluto”, mas com muitos outros poemas de Cecília que têm o mar como motivo condutor. Os poemas são apresentados em quadrinhas, sem a preocupação com a métrica, que é livre. Embora o livro de encantamento esteja sempre presente de forma intertextual, há intertextos com outros poemas, como este que se segue:

                        O mar de Cecília
                        não é alegre,
nem triste.
É mar absoluto. 

            Será que o leitor sabe o motivo de Cecília querer  morar no último andar? Leia o texto de Cecília, depois o de Rosinha, tudo fica bem claro.

No último andar é mais bonito
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.
(Cecília Meireles. O último andar. In: Ou isto ou aquilo).

Um dia Cecília
foi para o último andar,
para de lá
ver todo o mar.
(Rosinha. O mar de Cecília).

As ilustrações são quase todas em cor grafite e sépia, vislumbram-se alguns detalhes em azul, como os olhos dos peixes, uma estrela mais brilhante no céu, um detalhe no barco que singra os mares. Nas três últimas páginas impera um azul intenso da cor do mar. Os versos que encerram o livro sintetizam o predomínio do mar e do azul.

[Para Cecília tudo é mar
- e mais nada.]   

As capas (frente e verso) mostram um labirinto na cor azul sob fundo escuro que se repete na folha de rosto. O labirinto é sugestivo, pode indicar caminhos poéticos a ser desvendados ou  caminhos a ser descobertos pelos viajantes.(Cecília foi ótima viajante, os livros “Crônicas de viagem” 1,2 e 3 comprovam o que afirmamos).

Com relação ainda a capa, a ilustração do labirinto pode sugerir uma brincadeira de esconde-esconde.   Cada leitor  tem a liberdade de dar  uma interpretação distinta, e a leitura se torna mais rica e mais agradável.

NOTAS LITERÁRIAS E CULTURAIS
A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) divulgou a relação dos livros premiados em 2018. Não tivemos surpresas, muitos livros indicados como o Melhor para Jovem, para Criança, Reconto, Ilustração já foram apresentados em nossa coluna. Segue a relação dos livros contemplados com a láurea de Melhor Livro dentre da cada categoria. Indicamos livro, autor e editora para conhecimento dos nossos leitores.

CRIANÇA: Hors-concorus: A quatro mãos. Marilda Castanha. Ed. Companhia das Letrinhas. Ainda nessa categoria foram contemplados os seguintes livros: O passeio. Paulo Lugones. Il. Alexandre Rampazo. Ed. Gato Leitor. Rosa. Odilon Moraes (texto e ilustração). Ed. Olho de vidro.

JOVEM: Catálogo de perdas. João Anzanello Carrascoza. Ed. SESI-SP.

POESIA: O Mar de Cecília. Rosinha. Editora do Brasil. 

RECONTO: Contos de Moçambique. Luan Chnaiderman. Fotografias de Christian Piana. Ed. FTD.

INFORMATIVO: Os trabalhos da mão. Texto de Alfredo Bosi. Il. Nelson Cruz .
TRADUÇÃO/ADAPT/CRIANÇA: O diário de Blumka. Iwona Chmielewska Ed. Pulo do Gato.

TRADUÇÃO/ ADAPT/JOVEM: Uma vez. Morris Gelitzman. Ed. 34.

TRADUÇÃO/ADAPT/ RECONTO: Barba Azul. Anabela López.Ed. Aletria.

TRADUÇÃO/ADAPT/INFORMATIVO: O menino Nelson Mandela. Ed. Melhoramentos.

LITERATURA DE LINGUA PORTUGUESA: Infâncias. Textos de José Letria (Portugal) e José Santos (Brasil). Ed. SESI-SP.

TEÓRICO: Decifra-me ou te devoro! O mito grego na sala de aula.  Vera Tietzmann. Ed. Cânone.

IMAGEM: De flor em flor. JohnArno Lawson e Sydney Smith. Ed. Companhia das Letrinhas.

Nota: Aqui está uma dica de bons livros infantojuvenis para crianças, jovens e adultos (pais e professores). 

( Publicado no jornal “Contraponto” B-3, 2018)

            POEMA DA SEMANA

O  ÚLTIMO ANDAR

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É la que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem,
para ninguém os maltratar:
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar.

( Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo)

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Mulheres de Machado


            MULHERES DE MACHADO
            (Neide Medeiros Santos – Leitora Votante FNLIJ/PB)

            Deve-se ler Machado não para compreender o Brasil, mas para ler grande literatura.
            (John Gledson. Por um novo Machado de Assis)
           
            “Mulheres de Machado” é uma coletânea com 17 contos, entre eles alguns bem conhecidos do leitor, como “Uns braços”, “Missa do galo”, “Miss Dollar”. Há contos que foram escritos no inicio da carreira do escritor e outros da fase da maturidade. O livro foi publicado pela editora SESI-SP, 2017, com apresentação de Hélio de Seixas Guimarães.

            Machado de Assis escreveu cerca de 200 contos. Embora não se negue a qualidade literária de contista do escritor, quando se compara com os romances eles são sempre relegados a um segundo plano.  Essa é a opinião de John Gledson, estudioso da obra machadiana. Lúcia Miguel Pereira,  grande conhecedora da obra de  Machado de Assis, considerava-o melhor contista do que romancista.

            A leitura dos dezessete textos da coletânea revela um traço comum.    As mulheres são sempre vistas sob o olhar masculino e se revelam nos pequenos gestos, na voz contida.  São protagonistas desses  contos, mas atuam de forma discreta, afinal estamos no século XIX e a mulher ainda teria que vencer os obstáculos impostos pela sociedade da época.

              Qual foi a visão que Machado  passou da atuação da mulher perante a sociedade do século XIX e início do século XX?  Através desses breves comentários  tento fornecer alguma luz,   ler o que está nas entrelinhas, o que não foi revelado totalmente, apenas sugerido.

            Como sempre ocorre nas histórias de Machado de Assis, o cenário escolhido é o Rio de Janeiro, capital do Brasil, onde residia a Corte  e  morava o escritor.  O conto “A pianista” retrata a época do segundo império e traz como protagonista Malvina, uma professora de piano que, por sua beleza e candura, desperta interesse em Tomás, filho de Tibério, dono de fábricas no Rio e pessoa de prestígio social.  Filha de uma viúva pobre, Malvina dava aulas de piano para ajudar a mãe nas despesas domésticas. O pai de Tomás, ao saber das pretensões amorosas do filho,  manda-o para Bahia a fim de afastá-lo da namorada indesejada. Queria uma nora rica e não uma simples professorinha de piano. Depois de passar um período na Bahia, Tomás volta para o Rio e sente que seu amor por Malvina não esmoreceu. Luta contra a oposição do pai que promete deserdá-lo caso casasse com a moça. Por fim, tudo se resolve a contento para os dois lados.

            Nesse conto, o escritor explora o preconceito social – uma moça pobre se enamora de um rapaz rico e surge oposição por parte da família do namorado. O final feliz se deve à maneira educada e amável de Malvina que, de forma sutil, acaba conquistando a confiança do sogro. Pode-se também atribuir a um ideal romântico, característica que marca  os primeiros romances e  contos machadianos.   

             “Confissões de uma viúva moça” atrai os leitores pelo título. É um conto  em que a protagonista relata para uma amiga, por meio  de cartas, o motivo de seu refúgio em Petrópolis  após a morte do marido. O enredo envolve uma mulher infeliz no casamento que se sente atraída por um sedutor indigno. Após a viuvez, liberta dos laços matrimoniais, o sedutor desaparece, isso provoca imenso sofrimento na viúva que resolve se retirar para a cidade serrana,  afastando-se da intensa vida social do Rio. Sabendo que, pela ousadia do tema, o conto poderia despertar protestos de uma sociedade dominada pelo puritanismo,  Machado publicou “Confissões de uma viúva moça” com o pseudônimo J.J. O jornal Correio Mercantil dirigiu irados ataques ao Jornal das Famílias, órgão responsável pela publicação deste conto.  Machado de Assis terminou revelando ser o verdadeiro autor do conto e tudo terminou com uma defesa assinada por Sigma (outro pseudônimo) que considerava o conto apenas realista e educativo.   Restou a dúvida: Quem seria Sigma? O próprio Machado ou algum amigo do escritor?

            Para John Gledson (2006, p. 41): “As mulheres, suas vidas, seus amores e frustrações são um dos temas que continuarão a preocupar Machado por toda sua carreira”.

            O leitor poderá se deliciar lendo ou relendo outros contos que se encontram no livro, como “Uns braços” e “Missa do galo”.   Neles irá encontrar personagens femininas que não se revelam inteiramente, elas se escondem e inspiram dúvidas.  Conceição, protagonista de “Missa do galo”,  e D. Severina, de “Uns braços”,  são mulheres sedutoras ou tudo não passou de conjecturas na mente de jovens adolescentes?  A grandiosidade de Machado está também nos pormenores, no pensamento reflexivo, no mínimo e no que está escondido.

            ( Texto publicado no jornal “Contraponto”, 2018) .


             POEMA DA SEMANA

                        SONETO CIRCULAR

                        A bela dama ruiva e descansada
                        De olhos langues, macios e perdidos,
                        C´um dos dedos calçados e compridos
                        Marca a recente página fechada.

                        Cuidei que, assim pensando, assim colada
                        Da fixa tela aos floridos tecidos,
                        Totalmente calados os sentidos,
                        Nada diria, totalmente nada.

                        Mas eis da tela se despega e anda,
                        E diz-me  - “Horácio, Heitor, Cibrão, Miranda,
                        C. Pinto, X. Silveira, F. Araújo,

                        Mandam-me aqui para viver contigo."
                        Ó bela dama, a ordens tais não fujo.
                        Que bons amigos são! Fica comigo.

                        ( Machado de Assis)

            Nota: Este soneto de Machado de Assis traz a data de 18 de abril de 1895 e foi publicado no jornal A Gazeta de Notícias.  Biógrafos do escritor contam a história deste poema: tudo parece ter começado com um quadro que Machado teria ganho de amigos e que pode ser visto por quem  visita hoje o acervo machadiano na Academia Brasileira de Letras. A tela é de Roberto Fontana.  Esta informação é de Marisa Lajolo e se encontra no livro “Histórias de quadros e leitores” ( Ed. Moderna,2006). Já visitei a ABL e vi in loco este belo quadro. Fica o convite para quem visitar a Academia Brasileira de Letras.

terça-feira, 22 de maio de 2018

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Filosofia para principiantes


            Filosofia para principiantes
            (Neide Medeiros Santos – Leitora Votante FNLIJ/PB)

            Um livro bom, um livro prazeroso, é aquele que, tendo mais páginas, nos agrada por mais tempo.
            (Mário Sérgio Cortella. Vamos pensar um pouco?).

            O filósofo Mário José Cortella e o ilustrador Maurício de Sousa estão reunidos no livro “Vamos pensar um pouco?” (Ed. Cortez, 2017). Cortella é mestre e doutor em Educação, foi professor universitário por 35 anos, secretário municipal de Educação de São Paulo (1991-1992), ultimamente dedica-se a escrever e publicar livros na área de filosofia para crianças e jovens. Maurício de Sousa é desenhista, ilustrador e quadrinista. Começou publicando tirinhas nos jornais de São Paulo, depois criou revistas, escreveu livros e hoje comanda um universo de personagens infantis que já somam mais de trezentos.  É o criador de personagens famosas como Mônica, Magali, Cebolinha, Cascão, Chico Bento e muitos outros. Algumas dessas personagens ilustram este livro.

            Dividido em 35 pequenos textos, Cortella incita o pequeno leitor a pensar sobre a vida, com “persistência e alegria, com generosidade e liberdade, com inventividade e criatividade”.

            A viagem pelos textos começa com o próprio título do livro: “Vamos pensar um pouco?”. A língua tem muitas sutilezas, vejam que basta uma pequena palavra para modificar tudo. Se eu digo: vamos pensar pouco? É bem diferente de: vamos pensar um pouco? Pensar pouco é pensar sem consciência, é não refletir: pensar um pouco já exige mais cuidado, exige certo esforço para refletir sobre determinados temas e assuntos.

            O que é o saber? É difícil explicar, mas vale a pena tentar. O autor parte do princípio que ninguém sabe tudo, mas devemos sempre querer saber mais, mesmo tendo a consciência de que é impossível saber tudo. A pessoa sábia recusa a mediocridade, ela quer sempre fazer o melhor que pode.

            Será que mudar de opinião diminui a pessoa? Não, pode até engrandecê-la. A liberdade de pensamento permite alterar a maneira como se pensava antes. E citamos um exemplo de mudança.  Dom Hélder Câmara, no início de sua vida sacerdotal foi integralista, ligado ao pensamento da direita, depois fez a opção pelos mais pobres e se tornou um socialista católico.  Boa mudança do padre Hélder!

            E sobre o tempo? O que temos a dizer? Um jovem de 20 anos considera o futuro extremamente distante. Quando se tem 60 ou 70 anos, a ideia de futuro é imediata. A respeito do tempo, o filósofo alemão Schopenhauer (1788-1860), no seu livro “Aforismos”, foi bem claro: “Vista pelos jovens, a vida é um futuro infinitamente longo, vista pelos velhos, um passado muito breve”.  O escritor, poeta e filósofo Bartolomeu Campos de Queirós, no livro “Tempo de voo”, também dialoga sobre a efemeridade do tempo. Uma conversa entre um ancião e uma criança mostra a visão que cada um tem do tempo. Para a criança, o Natal demora a chegar, para o velho parece que foi ontem e já nos aproximamos de um novo Natal.

            O que é conhecimento partilhado? Será que você já parou para pensar que ninguém é só aluno e que ninguém é só professor? Todos podem ser educadores, ensinar algo a alguém, todo mundo aprende alguma coisa com o outro. “Mestre” tem um sentido maior, é aquele detentor de muitos saberes, é mais elevado, está em um patamar mais alto. O mestre dedica seu tempo a partilhar conhecimento. Álvaro de Campos, o heterônimo erudito de Fernando Pessoa, chamava Alberto Caeiro, de meu mestre. Caeiro não era o mais versátil, era o poeta das coisas simples, da natureza, era aquele poeta que falava com as flores, com os regatos, era detentor de saberes ligados à natureza. Para Álvaro de Campos, Caeiro era seu verdadeiro  mestre.

            Não falta nesse livro uma pitadinha de humor. Conta o professor que, certa vez, estava fazendo uma palestra para profissionais da área de enfermagem e tudo decorria muito bem. Quando chegou a hora do debate, uma enfermeira bastante inteligente fez esta pergunta:  “Que comentário o senhor gostaria que fizessem a seu respeito no dia do seu velório?”.  Durante oito minutos, o expositor procurou responder à instigante pergunta. A resposta que deu não foi revelada neste livro. Terminada a explanação, virou-se para a enfermeira e perguntou: “E você, o que você quer que falem sobre você no seu velório?” A resposta não poderia ser mais inteligente: “Nossa, ela está se mexendo!” Foi uma resposta bem-humorada e deixou o professor sem graça. Ele apresentou argumentos filosóficos, ela simplesmente indicou uma vontade que todos temos – não morrer nunca.

            Essas são algumas das lições que o professor Mário Sérgio Cartela procura transmitir a quem está procurando entender os mistérios da vida, os porquês que envolvem tantas indagações.  No terreno da Filosofia, temos muitas perguntas e poucas respostas, mas é bom refletir sobre certas coisas que não sabemos definir, isso nos torna mais humanos, mais humildes e conscientes do nosso pouco saber.
            Esse livro me levou ao encontro de outro que será lançado brevemente – “Diário de um professor de Filosofia do ensino médio”. Aguardemos a chegada desse livro, adianto que o professor é paraibano e durante muitos anos lecionou Filosofia na UFPB e no ensino médio.

(Paraíba. Publicado no jornal “Contraponto”, B3,  11 a 17 de maio de 2018)   

            POEMA DA SEMANA

            MEMÓRIA PRÉVIA

            O menino pensativo
            junto à água da Penha
            mira o futuro
            em que se refletirá na água da Penha
            este instante imaturo.

            Seu olhar parado é pleno
            de coisas que passam
            antes de passar
            e ressuscitam
            no templo duplo
            da exumação.

            O que ele vê
            vai existir na medida
            em que nada existe de tocável
            e por isto se chama
            absoluto.

            Viver é saudade
            prévia.
            ( Carlos Drummond de Andrade)

domingo, 4 de março de 2018

Os trabalhos da mão


OS TRABALHOS DA MÃO  : um ensaio que se tornou uma obra de arte

(Neide Medeiros Santos – Leitora Votante FNLIJ/PB)

A mão é voz do mudo, é voz do surdo  é leitura de cego.
(Alfredo Bosi. Os trabalhos da mão).

            A ilustração em livros para criança é comum em todas as épocas, dos livros mais antigos aos mais modernos.  Nos anos 1930, os romances brasileiros também traziam  ilustrações.  Artistas famosos, como Tomás Santa Rosa, Luís Jardim, Poty e Caribé eram contratados para ilustrar capas e algumas páginas internas dos romances.   Lamento que esta prática não seja mais tão comum em nossos dias.  Na literatura infantil brasileira da atualidade (prosa ou poesia), a ilustração continua tendo um papel preponderante.

 Mas o que dizer do ensaio? Conheço poucos ensaios que receberam a participação de artistas plásticos. “Poética das águas” (Ed. Sebo Vermelho), com textos de Moacy Cirne e Gaston Bachelard, fotografias de Candinha Bezerra, é um bom exemplo de ensaio ilustrado, assim não me causou surpresa quando recebi o livro “Os trabalhos da mão”, (Ed. Positivo, 2017), ensaio de Alfredo Bosi com ilustrações de Nelson Cruz. 

O ensaio de Bosi se encontra no livro “O ser e o tempo da poesia”. É um texto que se aproxima de um poema em prosa.   Como “artista da mão”, para usar uma expressão bachelardiana, o ilustrador  trilhou os caminhos da pintura através de séculos e ilustrou cada parágrafo do ensaio com uma pintura condizente com o texto verbal.

De modo sucinto, segue uma breve biografia dos autores do livro “Os trabalhos da mão”. Alfredo Bosi foi  professor de Literatura Brasileira da USP, é professor emérito por essa mesma Universidade. A partir de 2003 passou a integrar a Academia Brasileira de Letras. Publicou, entre outros livros, “História concisa da literatura brasileira”, “O conto brasileiro contemporâneo”; “O ser e o tempo da poesia”; “Céu e inferno: ensaios de crítica literária e ideológica”; “Dialética da colonização”.

Nelson Cruz ilustra para o mercado editorial desde 1987. Já conquistou vários prêmios, entre eles FNLIJ, APCA, Jabuti e Octogones, na França. Em 2016, “Haicais visuais” recebeu o Troféu Monteiro Lobato da revista Crescer. Na homenagem aos 150 anos da publicação de “Alice no país das maravilhas”, ilustrou “Alice no telhado”. Os originais deste livro participaram de uma exposição “Tea with Alice”, no Museu de História de Oxford, na Inglaterra, e depois na Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal.  

Na adolescência, Nelson Cruz apreciava as pinturas dos grandes mestres nos livros didáticos e nos livros que consultava na biblioteca da escola,  sorvia suas pinceladas, cores, composições e sentia uma grande atração principalmente pelos artistas que se afastavam da elite e da nobreza e voltavam seus olhares para as classes operárias. Ele cita entre os artistas de sua predileção Jean-François Milliet, Gustave Courbert.

Sempre houve a preocupação dos pintores com o trabalho das mãos e isso está registrado na história da pintura.  O ilustrador pesquisou e reproduziu, com sua marca pessoal, as telas de alguns pintores que se dedicaram a representar artisticamente a tarefa manual, desde as mais simples, como lavrar a terra, lavar roupa, até as mais refinadas – a arte da pintura.  Recriou  telas dos grandes mestres e, de forma muito didática, apresentou um esboço das obras originais que deram origem às ilustrações do livro. A esse trabalho de recriação, Nelson Cruz chamou de  “interpretações de clássicos da pintura”.

  O livro “Os trabalhos da mão”, da Editora Positivo, tanto se adapta  para o público juvenil como  para os adultos. Cada fragmento do ensaio vem na companhia de uma ilustração. Ao manusear o livro, o leitor se depara com VAN GOGH, Vincent – “Estudo de mulher camponesa plantando beterraba”; DEBRET, Jean – Baptiste - “Índios na missão de São José”; COUBERT, Gustav –“ Mulheres peneirando trigo” e muitos outros. O olhar caminha do texto verbal para o pictórico.

Apresento dois exemplos que demonstram a interação entre a ilustração e o ensaio. O primeiro é a tela de FILIPPI, Lucienne – “Retrato de Louis Braille”.  O texto escolhido aparece como epígrafe desta resenha – “É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura de cego”. A pintura  de um homem com os olhos fechados vem na companhia de símbolos em braille.

O segundo é o quadro de POTTHAST, Edward Henry – “A lavadeira”. O texto que foi escolhido para ilustrar o fragmento é este: “Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao sol, recolhe-a dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobre-a, guarda-a”. E assim acontece com outros quadros –  texto e pintura  se completam.  

  Este livro vem comprovar que a boa literatura deve ser lida por crianças, jovens e adultos.  O gosto pelo belo, pela arte começa na infância. “Os trabalhos da mão” é um livro de arte para ser compartilhado por muitos.   

            POEMA DA SEMANA
            CANÇÃO

            Pus o meu sonho num navio
            e o navio em cima do mar;
- depois abri o mar com as mãos
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio,
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio.

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

( Cecília Meireles. Viagem)  

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Mulheres Extraordinárias

 MULHERES EXTRAORDINÁRIAS
            (Neide Medeiros Santos – Leitora Votante FNLIJ/PB)

            A pintura, mesmo com o doente calado, permite que você olhe, ainda que pelas frestas, para dentro do interno.
            (Nise da Silveira. O Globo, 1987).

            Duda Porto de Souza e Aryane Carraro escreveram o livro “Extraordinárias: mulheres que revolucionaram o Brasil”, selo da Editora Seguinte, 2017 (Companhia das Letras). Nove ilustradoras fizeram o trabalho de traçar o perfil fisionômico das 44 mulheres que contribuíram para o engrandecimento das letras, das artes, das causas sociais e da história do Brasil. Figuram 40 mulheres e quatro “abrasileiradas”. O livro se destina ao público jovem, mas poderá ser lido de forma prazerosa por todos – mulheres e homens, jovens e adultos.  

            Ao longo dos textos, aparecem explicações com o objetivo de torná-los mais acessível ao leitor.  Nas últimas páginas, encontram-se: “Linha do Tempo. A vida das mulheres no Brasil”, “Glossário” e informações sobre as autoras e as ilustradoras
......
            O livro seguiu uma ordem cronológica temporal.  O primeiro nome que desponta nesse variado universo feminino é o de Madalena Caramuru, a primeira brasileira alfabetizada. Não se sabe com precisão a data de seu nascimento, existe o registro de seu casamento em 1554 com o português Afonso Rodrigues. Madalena era filha do náufrago português Diogo Álvares Correia, casado com a índia Paraguaçu. Somente no século XVIII as meninas brasileiras passaram a frequentar as escolas, mas com muitas restrições. Há um fato relevante envolvendo Madalena, ela escreveu uma carta ao padre Manuel da Nóbrega pedindo o fim dos maus-tratos às crianças indígenas e o início de uma educação feminina com o aprendizado da leitura e da escrita. Esse pedido foi levado à rainha de Portugal, mas não foi colocado em prática. Além de ter sido a primeira mulher brasileira alfabetizada, Madalena lutou pelos direitos da mulher no século XVI.

A matriarca da família Alencar, Bárbara de Alencar, é outra figura feminina de destaque no cenário nacional. Nasceu em Exu (PE) em 1760 e morreu em 1832, em Fortaleza. Foi uma das primeiras prisioneiras políticas do Brasil. Foi presa por lutar contra o domínio português.  Após a independência do Brasil, Bárbara continuou contestando o autoritarismo do governo e opondo-se às políticas centralizadoras da Constituição do Império. O nome de Bárbara Alencar está gravado no Livro de Aço no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. No Livro de Aço, estão gravados os nomes dos heróis e heroínas da Pátria.     

Nísia Floresta é outra nordestina que merece figurar entre as mulheres extraordinárias. Seu nome verdadeiro era Dionísia Pinto Lisboa, depois de adulta resolveu adotar o pseudônimo de Nísia Floresta Augusta Brasileira. Natural de Papari (RN) nasceu em 1810 e morreu em Rouen, na França, em 1885.  Por sua inteligência, sua luta pela educação das mulheres, abolição da escravidão, liberdade para os índios e liberdade religiosa, Nísia Floresta ultrapassou as fronteiras do Brasil. Era um espírito revolucionário e publicou o primeiro livro de caráter feminista no Brasil quando contava apenas 22 anos – “Direitos das mulheres e injustiça dos homens” (1832). Como educadora, batalhou por uma escola igualitária para meninos e meninas. . Com o segundo marido, Augusto, criou um educandário feminino no Rio de Janeiro e oferecia às meninas as mesmas disciplinas que eram ofertadas aos meninos. Em reconhecimento a seu trabalho pioneiro, a cidade de Papari mudou o nome para Nísia Floresta.

A presença da mulher nas artes plásticas do Brasil é recente. Um pouco antes do brilho de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, encontra-se a figura de Georgina de Albuquerque, nascida no interior de São Paulo (1885). Desde pequena, revelava pendores artísticos. Estudou pintura com o pintor italiano Rosalbino Santoro . Aos dezessete anos estava tão confiante da sua arte que enviou uma tela de sua autoria para a ENBA – Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. O quadro foi considerado excelente e os críticos de arte achavam que se tratava de uma cópia, viram depois que era um trabalho original. Georgina casou com o artista plástico Lucilo de Albuquerque e juntos foram estudar em Paris na École de Beaux-Arts e na Académie Julian. De volta ao Brasil, continuou sua carreira artística e em 1919 ganhou a Medalha de Ouro por seu quadro “Família”. Ela abriu caminho para outras pintoras e foi a primeira mulher a dirigir a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), no Rio de Janeiro.

A caricatura sempre foi a marca forte de Nair de Teffé. Nascida no Brasil, passou a infância e adolescência em diferentes países da Europa. Quando voltou a residir no Brasil estava com dezessete anos e já sabia o que queria fazer – caricatura. Inicialmente utilizou o pseudônimo de Rian em seus trabalhos. Sua estreia como caricaturista aconteceu na revista ilustrada Fon-Fon e colaborou em diversos periódicos e revistas do Rio de Janeiro. Nair foi casada com o Marechal Hermes da Fonseca que foi presidente do Brasil em concorrida eleição com Rui Barbosa.   Uma das charges mais famosas de Nair é a de Rui Barbosa que se tornou ridículo aos olhos da caricaturista. Até hoje são poucas as mulheres que lidam com a caricatura, Nair foi pioneira nessa arte.

Quando se fala em inovação no campo da psiquiatria brasileira aflora o nome da Dra. Nise da Silveira, médica alagoana que foi uma revolucionária nas ideias políticas e na medicina. Presa no governo ditatorial de Getúlio Vargas sob a acusação de comunista, Dra. Nise conviveu com Graciliano Ramos e Olga Benário no período em que esteve presa no Rio de Janeiro.  Adepta da psicologia junguiana, fundou a Casa das Palmeiras e deu início a um trabalho terapêutico em prol dos doentes mentais que foi reconhecido internacionalmente. Ela pregava o tratamento psiquiátrico através da arte, dos trabalhos manuais e da fraterna convivência com cães e gatos.  É autora de vários livros, entre eles “Jung: vida e obra”. No estado de Alagoas, a Medalha Nise da Silveira é concedida a mulheres que se destacam nas letras e nas artes.

Entre as quatro mulheres abrasileiradas, desponta Dorothy Stang, uma missionária americana que dedicou quarenta anos de sua vida em defesa do desenvolvimento sustentável da Amazônia e dos direitos dos camponeses. O brutal assassinato de que foi vítima comoveu a todos. Seu nome ficou gravado para sempre entre aqueles que lutaram por um Brasil mais justo, mais fraterno e mais humano.

Há muitas outras mulheres que desempenharam papéis importantes na história do Brasil. Você é convidado a ler este livro e conhecer mais um pouco sobre a vida e o trabalho de outras mulheres extraordinárias.  

( Publicado no jornal "Contraponto". Paraíba, fevereiro de 2018) 


POEMA DA SEMANA
MULHER PROLETÁRIA
MULHER PROLETÁRIA - única fábrica
que o operário tem, (fábrica de filhos)
            tu
na tua superprodução de máquinas humanas
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.

            Mulher proletária
o operário, teu proprietário,
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar teu proprietário.

( Jorge de Lima. Poemas Escolhidos).