Uma viagem literária e
gastronômica através do Brasil
(Neide Medeiros Santos.
Leitora-votante FNLIJ/PB)
A felicidade, fique
o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles.
Entregue as suas flores a quem sabe cuidar delas e comece. Ou recomece. Nenhuma
viagem é definitiva.
(José Saramago. Apresentação do livro Viagem a Portugal).
O mel de Ocara:
ler, viajar, comer (Ed. Global, 2013), de Ignácio de Loyola Brandão, é um
misto de relato de viagens, palestras sobre livros, literatura e passeios pela
gastronomia brasileira. O autor define o livro como crônicas, quase contos,
reportagens literárias bem humoradas. Não se esqueceu da formação de leitores, das
peculiaridades de cada lugar que visitou, da maneira de se expressar e do
vocabulário da cada região. E, naturalmente, das comidas.
O livro contém experiências vivenciadas nesses contatos e
histórias de viagens por países europeus, mas vamos dar destaque e seguir o
roteiro de cidades brasileiras, especialmente, as nordestinas.
Nossa viagem começa em Ocara. Quem nunca ouviu falar em
Ocara, lendo o livro de Ignácio de Loyola Brandão não esquecerá jamais. Ocara é
uma pequena cidade do interior do Ceará, tem 22.600 habitantes, fica a 82
quilômetros de Fortaleza. O escritor
recebeu um convite para participar da 6ª Feira do Livro do Ceará e deveria se
deslocar até aquela cidade para fazer uma palestra. O público era bem diversificado
– estudantes de nível médio, universitários do curso de letras, professores,
crianças e mães com filhos de colo.
Nunca um escritor havia passado por Ocara para fazer uma
palestra. Mais de 200 pessoas se
encontravam no Centro Sócio Cultural de Jovens da Vila São Marcos para ouvir a
fala de Ignácio de Loyola Brandão. O
clima era de festa. A manhã começou com a apresentação de um reisado com o boi
dançando valsas e xotes. E veio uma
grande surpresa - quem fazia o papel do boi era um velhinho de 92 anos, e como
dançava!
Depois das apresentações musicais e folclóricas, o
escritor falou de modo bem simples para aquele auditório que demonstrava sede
de saber. Todos ouviam com muita atenção, foram mais de duas horas de conversa,
de histórias de livros, de experiências com livros e leitura. Seguiram-se inúmeras perguntas e o que cativou
mais o escritor foi a pergunta de uma senhora de “boa idade” – queria saber como
se faz um livro, como se colocam as letrinhas em um livro. A cabocla ficou tão empolgada com a palestra
que perguntou:
Será que um dia uma
dessas professoras me ensina a ler e a escrever? Achei bonito o que o senhor
disse aqui, devia ter sempre. (p.63).
Fez mais outra pergunta:
O senhor aceita um
presente? Meu. Feito no meu quintal. Coisa pura. Tenho umas abelhinhas muito
trabalhadoras. (p.63).
E deu o presente ao
palestrante – uma garrafa de mel de abelhas com rolha de sabugo de milho. Ela
criava abelhas no quintal de sua própria casa – era “um mel puro, perfumado,
doce e penetrante”. Diante desse presente valioso, o escritor teve essa reação: Podem me pagar quanto quiserem, nada supera
este cachê da cabocla de Ocara.
Da Paraíba, quando veio participar da 1ª Bienal do Livro (2006),
as impressões marcantes se referem à beleza dos monumentos antigos e à
gastronomia regional. E vem esta observação muito válida: O centro
da cidade antiga foi esquecido ou desprezado pela especulação imobiliária, de
maneira que ainda permanecem de pé vários palacetes, casa coloniais (o Pavilhão
Chinês, onde as pessoas iam tomar chá à tarde, é lindo, merecia mais cuidado),
vestígios de uma arquitetura que fez da cidade um centro sofisticado.
(p.79).
O convite de Vladimir Neiva, da Grafset, para comer
“cabeça de galo” fez o escritor tremer, ele não gosta de frango e muito menos
da cabeça. Imaginou-se chupando ossinhos, mas teve de ser gentil com o
anfitrião e aceitou o convite. Quando chegou “a cabeça de galo”, deliciou-se, e aproveitou para dar a receita que
não vamos transcrever – todo paraibano
que se preza sabe decorada.
Na cidade de Natal
(RN), participou de outra Bienal do Livro (2006) e escolheu como tema da
palestra – “a busca da palavra perfeita”. Para ilustrar sua fala, começou com um
verso de Marize Castro: Palavras quando
caem sobre a gente surpreendem,adoçam, cortam”.
Marize Castro, poeta
do Rio Grande do Norte, é uma das vozes mais líricas e atuantes da literatura
potiguar.
Não faltam as
referências à gastronomia do Rio Grande do Norte – patolas de caranguejo, água
de coco e ovos de curimatã, o caviar nordestino. Quem é da região do Seridó –
Caicó, Jardim do Seridó, Currais Novos (RN), Santa Luzia (PB) gosta muito dessa
iguaria, um manjar dos deuses.
Quem conhece uma cidade no Brasil onde as crianças leem
20 livros por mês? Ela existe, sim, senhor. É Teresina, capital do Piauí. Na
“Casa Meio Norte”, situada no bairro Leste, as crianças têm paixão por livros e
pela escrita. Ignácio de Loyola Brandão esteve lá e confirmou tudo.
O bairro Cidade Leste vive sob o domínio da violência. Lá
se encontram os foras da lei, traficantes, ladrões, mas esses meninos que moram
na “Casa Meio Norte” vão mudar essa paisagem através do estudo e da leitura.
Para os meninos que vivem essa dura realidade, o escritor
contou a história do “Menino que vendia palavras”, um livro de sua autoria que
conquistou vários prêmios nacionais.
O protagonista desta história é um menino que tem um pai
que era um verdadeiro dicionário, sabia o significado de muitas palavras. Se os
amigos queriam saber o que significava determinada palavra, recorriam ao menino
que se valia do pai. Esperto e inteligente, ele começou a vender palavras,
trocava-as por objetos de sua preferência. No final do livro, vem esta lição
muito oportuna para a ocasião – quanto maior for seu vocabulário mais chances
de conquistar o mundo você terá.
Ele descobriu, no meio daqueles meninos da
“Casa Meio Norte”, poetas, escritores, cronistas, contistas. Muitos textos produzidos
por essas crianças foram lidos durante esse proveitoso encontro. O escritor estava diante de crianças que
amavam os livros e a literatura.
O texto sobre o Piauí termina com essas bonitas palavras:
Há o Brasil aparente
e o Brasil oculto com pessoas admiráveis sobre as quais não cai um foco de luz
e elas não precisam, são alimentadas por sonhos e ideais. Brasil que caminha. (p.
72).
Palavras que parecem saídas da boca de Ariano Suassuna ao
repetir a opinião de Machado de Assis no seu discurso de posse na Academia
Brasileira de Letras: Há um “país real”
que é bom, revela os melhores instintos e há um “país oficial”, caricato e
burlesco”.
Diante daquela
realidade vivenciada pelas crianças do Piauí, Ignácio de Loyola Brandão estava
face a face com o “país real”.
Há muitas outras histórias, relatos vivos e pungentes de
outras regiões do Brasil. Privilegiamos o Nordeste e as observações sobre
algumas cidades visitadas pelo escritor, o contato com pessoas simples e cheias
de sabedoria e a gastronomia de uma região rica de sabores.
Não vamos atravessar o Atlântico agora –
Lisboa, Costa Brava, Borredà, Roterdà, Frankfurt, Bad Berleburg, Berlim e Paris
nos esperam para a próxima viagem. O
trem vai partir e percorrer outras cidades brasileiras e o avião nos espera
para atravessar o Atlântico.
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