O enigmático livro de Ana
(Neide Medeiros
Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)
Jamais
li o livro de Ana,
Mas
se fico atento ao mundo e sua festa,
Posso
adivinhar a escritura.
(Bartolomeu Campos de Queirós. O livro de Ana)
Ana estava sentada com o livro
aberto sobre os joelhos. Maria, ainda menina, não conhecia as letras. Ana
passava as folhas do livro com a delicadeza de quem tocava harpa.
Numa tarde silenciosa, a menina
pediu à mãe:
“ – Mãe, conta-me o que está escrito em seu livro. Leia
para mim o que anda guardado pelas palavras. Quero escutar o que faz seu
coração feliz”.
De modo paciente, a mãe respondeu
que todas as coisas estavam contidas naquele livro, desde o visível ao
invisível, do tocável ao intocável. E prosseguiu dizendo que aquele livro
contava o que havia acontecido antes de tudo.
Curiosa como toda criança, a menina
quis saber o que havia acontecido antes de tudo, e a mãe explicou:
“– No princípio só existia o vazio.
Tudo se misturava: noite e dia, outono e primavera. Não havia o longe nem o
perto, terra ou mar, início ou fim. O
nada ocupou todo o vazio. [...]. Ele
criou o mundo. E o que era caos foi ganhando ordem. O que era desordem ganhou harmonia. E dentro
do nada Ele iniciou a criação.” (p.17)
Estes diálogos aparecem nas
primeiras páginas de “O Livro de Ana”, de Bartolomeu Campos de Queirós (Ed.
Global, 2009), com ilustrações de Marconi Drummond.
Ana lia aquele livro de forma carinhosa e
acompanhava as palavras com os olhos. Explicava que no primeiro dia surgiu o
firmamento, no segundo Ele fez a terra e no terceiro criou o mar. Pouco a pouco,
o Criador ia colocando as coisas no seu devido lugar.
Em “ O Livro de Ana”, o escritor compartilha com o leitor uma
possível resposta para a dúvida que sempre o acompanhou ao olhar a imagem de
Sant´Ana. A imagem (pintura ou escultura) de Sant´Ana com um livro nas mãos e Maria, junto da mãe, atenta aos ensinamentos
maternos, sempre exerceu forte atração no escritor. Diante da imagem da santa,
ele se quedava silencioso e imaginava o que poderia estar escrito naquele
livro. Para quebrar um pouco desse mistério, resolveu escrever “O livro de
Ana”.
A primeira escultura de Sant´Ana como mestra ensinando a filha a ler surgiu na
Bretanha, século VII, quando a leitura foi permitida a todos da região. A
devoção à Sant´Ana Mestra se difundiu
pelo mundo. A imagem da Santa se tornou símbolo da pedagogia.
Com o dom de transformar as mais
prosaicas palavras em poesia, o escritor caminha lado a lado com o livro do
Gênesis e o olhar voltado para a imagem de Sant´Ana, criando um diálogo muito afetivo entre mãe (Sant´Ana)
e filha (Maria).
Marconi Drummond é o autor das ilustrações. Desenhos do mapa mundi, o sol, a lua, embriões de
animais e humanos, círculos, figuras humanas, e formiguinhas que parecem passear pelas
páginas do livro complementam o texto de Bartolomeu.
O texto verbal aparece separado das
ilustrações por um corte que atravessa toda a página, somente na última página,
quando a narrativa da criação do mundo se completa, encontramos a junção texto
verbal/ ilustração.
Há duas páginas que chamam a atenção
do leitor. Na página 12, a ilustração que acompanha o texto vem marcada por
traços na cor azul que correspondem exatamente às palavras do texto verbal. Na
pagina 20, aparece a reiteração da letra m (minúscula), também em azul. Seria o
“m” inicial do nome Maria, mãe ou mar? São enigmas que desafiam o leitor.
Este livro é um convite à reflexão
sobre o poder das palavras, um louvor ao meditar, ao silêncio, à música. A
leitura feita por Ana acontecia entre o adeus do sol e o boa-noite da lua, hora
de sossego, hora em que os anjos voam e o silêncio é quebrado apenas pelo som
da flauta, violino e cítara. Nesses momentos, apenas o coração escuta.
Para concluir estas observações
sobre este bonito e enigmático livro, vale repetir as palavras do
“menino-poeta”:
“Como uma fila de pequenas formigas
buscando o açúcar, também as palavras trazem chaves. Destrancam destino, abrem
histórias, libertam direções. E mais, fazem brotar a primavera mesmo se o tempo
é de inverno. “
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