A LINGUAGEM DA PAIXÃO: a
“Pedra de Toque” de Mário Vargas Llosa
Piedra de Toque refleja lo que soy, lo que no soy, lo que creo, temo y
detesto, mis ilusiones y mis desánimos, tanto como mis libros, aunque de manera
más explícita y racional.
(Mário Vargas Llosa. Piedra de Toque) ·.
A Linguagem da
Paixão (El Lenguaje de la Pasión. Punto de Lectura, 2003), de Mário Vargas
Llosa, reúne artigos publicados pelo escritor peruano, em sua coluna “Piedra de
Toque”, no diário El País de Madrid, entre os anos 1992 e 2000.
Os pequenos artigos de Vargas Llosa oferecem uma visão e
uma análise da conturbada sociedade do fim do século, com abordagens de temas
variados: problemas culturais, notas de viagens, literatura, pintura, música e
acontecimentos da atualidade. São 46
textos escritos em diferentes partes do mundo e publicados, quinzenalmente,
através do jornal El País.
Em 1998, Llosa ganhou o Prêmio José Ortega y Gasset, na Espanha,
pelo texto – Nuevas Inquisiciones, incluído
nessa coletânea. O periodista relata o escândalo em que foi envolvido o
ministro inglês Ron Davies e condena a imprensa sensacionalista que se
aproveita de certos casos para se intrometer na vida privada de pessoas
importantes: políticos, artistas, intelectuais. Llosa trata o assunto de forma
imparcial, longe do sensacionalismo de certos órgãos da imprensa.
Mas, no conjunto da coletânea, um texto nos chamou a
atenção – La Señorita Somerset. O
articulista conta uma história real que se assemelha a uma pura ficção e inicia
com estas palavras:
A história é tão
delicada e discreta como devia ser ela mesma e tão
irreal como os romances que escreveu e devorou até o fim de seus dias.
Quem é a protagonista da
história? Margaret Elizabeth Trask, uma inglesa nascida no inicio do século XX
e que, a partir dos anos 30, escreveu e publicou histórias românticas
utilizando o pseudônimo de Betty Trask. Ao morrer, Miss Trask deixou todos os
seus bens, avaliados em 400.000 libras esterlinas, para a Sociedade de Autores
da Grã-Bretanha. De acordo com seu testamento, esse dinheiro deveria ser
atribuído como prêmio literário anual a um novelista menor de 35 anos que
escrevesse uma “história romântica ou uma novela de caráter mais tradicional
que experimental”.
Pouco a pouco, através da prosa fluente de Vargas Llosa,
vamos conhecendo um pouco da vida dessa enigmática escritora. Margaret Elizabeth Trask passou a vida a ler
e a escrever sobre o amor. Em seus 88 anos
de existência, não teve nenhuma experiência amorosa. As testemunhas afirmam que
morreu “solteira e virgem, de corpo e de coração”.
A família de Trask era de Frome, industriais que
prosperaram com a fabricação de tecidos de seda e confecção de roupas. A
senhorita Trask teve uma educação cuidadosa, puritana e estritamente caseira. Após
a morte do pai, passou a se dedicar à mãe e a escrever romances, no ritmo de
dois títulos por ano. A pessoa mais
próxima de Miss Trask era a administradora da biblioteca de Frome. Era uma
leitora insaciável e um empregado da biblioteca fazia uma viagem semanal à casa
da escritora levando e recolhendo os livros que ela tomava emprestados à
biblioteca.
Os vizinhos de Miss Trask acham inconcebível que tenha
deixado todo o seu dinheiro para a Sociedade dos Autores da Grã-Bretanha e eles
desconheciam o lado de escritora da estranha senhorita e questionam:
Por que Miss Trask não aproveitou essas 400.000 libras
esterlinas para viver melhor? Por que premiar novelas românticas?
O articulista responde a essas perguntas com os seguintes argumentos:
Miss Margaret teve uma vida maravilhosa, cheia de exaltação e aventuras. Sua
generosidade, sacrifício e nobreza são comparáveis à vida dos santos. A
existência de Margaret Elizabeth Trask foi intensa variada e mais dramática do
que muitos dos seus contemporâneos.
Vargas Llosa também lança interrogações: Miss Trask foi
mais feliz do que aqueles que preferem a realidade à ficção? Ele acredita que
sim, e conclui que o fato de destinar
toda sua fortuna aos escritores de novelas românticas é a melhor prova de que
foi para o outro mundo convencida de que fez bem em substituir a verdade da
vida pelas mentiras da ficção.
Dentre os inúmeros artigos dessa coletânea, este foi o
que mais nos atraiu. É uma história verdadeira? Conta uma meia-verdade? Não
importa. Valeu pela beleza e ternura do relato.
( Publicado no jornal O Norte) .
Nenhum comentário:
Postar um comentário