sábado, 15 de novembro de 2008

uma casa povoada de poesia



Artigo - Uma casa povoada de poesia

E o carteiro todo dia leva um pouco de menino envelopando curiosidades onde se lê apenas o silêncio. 
(André Neves. A Caligrafia de Dona Sofia)

Neide Medeiros Santos, Professora e Crítica Literária - FNLIJ/PB

André Neves nasceu em Recife e atualmente está morando em Porto Alegre, escreve e ilustra livros para crianças, já ganhou muitos prêmios literários. Seus livros circulam pelo mundo, viajaram para a Feira de Ilustração de Livros Infantis da Bolonha, na Itália, e estiveram presentes na Feira de Livros da Bratislava, na Eslovênia.

A Caligrafia de Dona Sofia (Ed. Paulinas) teve uma 2ª edição em 2006 e foi indicado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil para compor o Acervo Básico. A indicação de um livro para o Acervo Básico significa ser distribuído para todas as bibliotecas públicas do Brasil, é um livro, portanto, que será lido por um número muito grande de leitores. A respeito desse livro, Elias José escreveu um belo texto que só os poetas sabem escrever e fez o maior elogio que se pode fazer a um escritor:

É um livro que a gente lê e diz com uma invejinha positiva: por que não fui eu quem o escreveu? Que ideia genial: criar uma velha que ama, copia, decora sua casa e, mais ainda distribui poemas pela cidade toda, conquistando amigos, dinamizando e enchendo de luz e cores a sua vida antes tão pacata.

Ao examinar a orelha do livro, encontramos dois oferecimentos - um para Badida, que tem uma casa toda escrita e outro para Elma, a irmã do escritor, que tem uma caligrafia tão bonita quanto a de Dona Sofia.

André me fez um oferecimento também carinhoso e me autorizou a entrar na casa de dona Sofia com estas palavras: Professora Neide, por favor entre, a casa já é sua e sem cerimônias eu vou entrando. A casa me atraiu por vários motivos: localização - está situada na parte mais alta da cidade, em uma colina; tem um belo jardim com muitas flores; é toda decorada com poesias espalhadas pelas paredes e pelos móveis. Os livros estão guardados nos armários, nas estantes, em cima da cômoda do quarto, em todos os cantos da casa. Para espalhar poesia para uma cidade inteira, mesmo sendo pequenina, é preciso ler e reler muitos livros.

Mas precisamos primeiro conhecer Dona Sofia. Quem é Dona Sofia? Convidamos o narrador para fazer a apresentação:

Dona Sofia era uma professora aposentada que durante toda a vida se dedicara a ensinar. Ela conhecia os segredos, os sonhos, as sensações e as emoções que as palavras dos poetas despertam no coração de cada um. Agora, cultivava flores em seu jardim para serem vendidas na cidade, garantindo assim algum dinheiro, além do que recebia de sua fraca aposentadoria. (...) Lia romances, contos, crônicas e, principalmente, poesias. (p.8)

Agora que já sabemos quem é Dona Sofia, vamos dar um ligeiro passeio por sua casa. Era uma casa diferente de todas as outras - as paredes estavam decoradas com poesias, não havia mais lugar para colocar os poemas, assim ela decidiu fazer cartões decorados com flores prensadas, colhidas no seu próprio jardim, escrever, com letra bem caprichada, versos de seus poetas preferidos e enviá-los para os habitantes de sua cidade. Muitos poemas foram resgatados de sua memória, do tempo em que era professora, pesquisou também nos livros de poesias que tinha em casa e contratou Seu Ananias, o único carteiro da cidade, para fazer a entrega dos cartões poéticos.

Diariamente Seu Ananias montava em sua bicicleta e subia até a colina, percorria aquele caminho cheio de curvas - subia a ladeira vazio de poesias e voltava com a sacola cheia de cartões poéticos. 
Um dia, que não Era domingo... mas um dia de semana qualquer, Seu Ananias teve uma surpresa - havia um cartão para ele e logo reconheceu a bonita letra de Dona Sofia. Seu Ananias pensou: 
Quem já viu? Escrever uma carta para o próprio carteiro! (p.18)

Dona Sofia escolheu um poema bem simples, romântico, de Casimiro de Abreu, para presentear Seu Ananias. Lá estava o poema escrito, com sua letra de professora, as duas primeiras estrofes de Meus oito anos.

No outro dia, o carteiro agradeceu o presente e disse que era a primeira vez que ganhava um cartão com poesia e perguntou a Dona Sofia quem era esse poeta que escrevia versos tão bonitos. Depois da explicação, o carteiro saiu procurando pelas paredes, no sofá, na geladeira, nas cortinas, poesias de Casimiro de Abreu.

Depois desse dia, Seu Ananias recebeu muitos outros cartões de Dona Sofia, com versos de poetas diferentes e aos poucos foi conhecendo mais poetas, ficava emocionado quando lia os poemas. O interesse do carteiro por poesias foi crescendo, crescendo. Dona Sofia começou a falar sobre a vida dos poetas, mostrar as diferenças de estilo e Seu Ananias resolveu escrever também um poema para Dona Sofia. O primeiro poema não parecia muito inspirado, era mais uma forma de agradecer à velha professora o bem que ela havia feito para ele, para toda cidade, quem sabe... de tanto ler poesia, de tanto conversar com Dona Sofia sobre os poetas e as diferentes maneiras de poetar, Seu Ananias não se torne algum dia um verdadeiro poeta.

A cidade hoje está repleta de poesia, todos gostam de receber cartões com poemas e flores, cultivam a boa poesia. Dona Sofia é rigorosa na seleção dos poemas, escolhe criteriosamente poetas e poemas e o povo daquela pequena cidade parece mais feliz e alegre.

João Pessoa é conhecida como a 2ª cidade mais verde do mundo, como seria bom se fosse também conhecida como a cidade dos poetas. Vamos adotar Dona Sofia como modelo e mandar cartões para os amigos povoados de poemas, há tantos bons poetas na Paraíba e, para não desgostar os vivos, cito apenas nosso poeta maior - Augusto dos Anjos.

Fizemos uma entrevista com André Neves que foi publicada no jornal O Balainho, da Universidade Oeste de Santa Catarina, ele confessou que seu gosto pela ilustração adveio do curso que fez com a artista plástica Badida, que mora em Olinda e tem uma casa toda decorada com quadros e poesia. Vale a pena uma visita à casa de Badida. Já estive lá e vi, na sala de visitas, uma cesta com livros e mais livros e entre eles - A Caligrafia de Dona Sofia.