quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Vozes do sertão dentro da gente

Vozes do sertão dentro da gente
(Neide Medeiros Santos – Leitora votante da FNLIJ/PB)


            As ondas do vento
            Seridó, Seridó embala
            do jardim à campina
            Seridó, Seridó ensina
            que o mar tem janelas
            tem janelas, Paraíba, tem
            com rendas que o mar
            contém
            (...)
            Viva o Nordeste dentro da gente!
            (Peter O´Sagae. Paraíba. “Resposta artística ao preconceito contra nordestinos”, palavras de Eloí Bocheco)).


“Vozes do sertão” (Ed. Cortez), livro organizado por Lenice Gomes e ilustrado por Rui de Oliveira, surge em momento propício – momento em que se procura valorizar o nordestino, o homem do sertão.  São múltiplas vozes que contam e cantam a nossa região – contadores de histórias, pesquisadores e violeiros estão presentes neste bonito livro que contém textos de nove escritores do Nordeste.
Lenice Gomes é natural de Japi, agreste pernambucano, e mora atualmente em Olinda. Escritora e contadora de histórias, a autora sempre se volta para as raízes nordestinas, valorizando as brincadeiras de roda, adivinhações, o carnaval recifense, os contos de origem popular. Ao organizar essa coletânea sua preocupação foi dar relevo ao que temos de mais autêntico – nossas histórias, nossos costumes, nossa gente.
Do Ceará a Minas Gerais, desfilam diante do leitor contos e cordéis que refletem a alma do nosso povo – suas crenças, seus valores, seu amor à terra e, acima de tudo, “a força do sertanejo que enfrenta a vida e a morte e insiste em contemplar a beleza e o encantamento do mundo”.
A primeira história nos vem do Ceará,  de Arievaldo Viana – poeta, ilustrador e publicitário, autor de inúmeros cordéis. Em nota que antecede seu texto – “O homem que queria enganar a morte”, o autor afirma que foi alfabetizado com a avó que usou muito literatura de cordel para ensinar ao neto a ler e a escrever.
Arevaldo Viana se utiliza de um tema sempre recorrente na literatura de cordel – a fuga da morte.  Através de redondilha maior, o poeta conta as artimanhas de um ricaço para escapar da morte. Ele procura enganá-la trocando o número de sua casa pelo número da casa do vizinho – um homem muito pobre que era explorado pelo ricaço. Será que deu certo o truque do homem rico?
Cláudia Lins, representante de Alagoas, traz uma lenda especial do folclore do Rio São Francisco. “Comadre Mocinha e o fogo correndo”.  Essa lenda corre pelas ribeiras do rio São Francisco – uma senhora viúva, conhecida por Comadre  Mocinha, contava que certa noite recebeu a visita de um fogo vindo do céu. O fogo veio bem rápido, pousou na sua mão, cochichou alguma coisa no seu ouvido e desapareceu. O que teria dito o fogo à Comadre  Mocinha? Mistérios. Ela nunca revelou.
Cida Pedrosa é de Pernambuco e seu texto – “A flor de mandacaru” fala sobre a morte do vaqueiro Antonio Biu, conhecido e respeitado por todas da redondeza. A sua morte não foi chorosa, os amigos estavam presentes e conformados com o desfecho.  Antonio Biu partiu ao anoitecer, na hora em que o vento soprava forte e o cheiro da flor do mandacaru tomava conta do terreiro.  
Da Paraíba, o texto de Estelita Medeiros é de teor memorialista. “A Dama Fantasma da Lagoa” reúne memória e ficção. Estelita resgatou casos e fatos ocorridos em João Pessoa e o personagem que conta a história é seu tio-avô. O ponto de apoio da história repousa no acidente que houve na Lagoa do Parque Solon de Lucena em 1975.  
“A lenda do bode berrador” é um texto de José Walter Pires, da Bahia. Em forma de cordel, o autor conta a história de um homem que se enforcou em um galho de baraúna e se encantou em um bode, um “bicho encantado, mal-assombrado, peçonhento” que inspirava medo a todos que passavam pela caatinga.
Salizete Freire Soares, representante do Rio Grande do Norte, com “Reconto que passa, passa o que conto já contei”, apresenta uma história cumulativa e utiliza parlendas e contos populares para recriar a cantiga infantil de Dona Baratinha e seu Ratão.
Arlene Holanda, natural de Limoeiro do Norte (Ceará), recolheu uma história ouvida na infância e contada por seu pai - “O tesouro enterrado no terreiro”. O texto é apresentado em cordel (sextilhas). Como o próprio nome indica, trata de uma história de botija.  Uma voz cavernosa, na calada da noite, sussurra no ouvido de José Quirino o local onde ele poderia encontrar um tesouro enterrado. Para localizar a botija, José Quirino enfrenta inúmeros obstáculos.
De Minas Gerais, Gislayne Matos, contadora de histórias e pesquisadora dos contos tradicionais, reconta a devoção de uma moça a Santo Antônio com o objetivo de conseguir um marido. Desesperada, um dia a moça resolve jogar a imagem do santo pela janela.  Ao cair na calçada, a imagem fica toda quebrada.  Nesse justo momento, ia passando um rapaz que tudo presenciou e o resultado... a moça conseguiu o marido desejado. Esse conto é bem antigo, vem de terras do além-mar.   
O último texto é da organizadora da coletânea, Lenice Gomes, escritora e pesquisadora da tradição oral de Pernambuco.  “Chora-lua, chora-lua” tem como protagonista uma moça contadora de histórias e cantora. Embora tivesse uma bela voz e soubesse contar bonitas histórias, a moça era feia, desajeitada e não conseguia atrair pretendentes para o casamento. Para esconder sua feiura, ela andava sempre com um véu no rosto. Um dia apareceu um rapaz que se apaixonou pela voz da moça. Ao retirar o véu foi uma decepção, o rapaz fugiu e a moça ficou sozinha cantando sempre uma canção dolente como o canto do pássaro noturno, popularmente chamado de “chora-lua, chora-lua”.
Todas essas histórias, contos e textos de cordel foram ilustrados por Rui de Oliveira que, com seu traço forte e cores vibrantes, representou muito bem as cores do sertão nordestino.
Nota: O poeta e crítico de literatura infantil, Peter O´Sagae, divulgou na internet
uma série de poemas dedicados aos estados do Nordeste do Brasil, um modo de responder àqueles que se preocupam em discriminar essa região e seu povo.   Cada poema traz o título de um estado nordestino e se encerra com o refrão: “Viva o Nordeste dentro da gente!” Transcrevemos, como epigrafe, a primeira estrofe do poema dedicado à Paraíba e a esta colunista. Peter foi nosso aluno em um curso que ministramos na Bienal do Livro em São Paulo há alguns anos. Ficou a amizade, o carinho, o afeto. Muito obrigada, Peter.


domingo, 28 de setembro de 2014

O Diário da irmã de Laura

                        O DIÁRIO DA IRMÃ DE LAURA
(Neide Medeiros Santos – Leitora votante da FNLIJ/PB)

            Todos querem mudar o mundo, o universo, mas ninguém dá o primeiro passo mudando a si mesmo.
            (Willian Junio Moreira de Souza. Aluno da Escola Municipal Anne Frank).

            Entre os judeus existe um rito de passagem – o “bar mitzvak” (aos treze anos, para os meninos) e o “bat mitzvak” (aos doze anos, para meninas). É a passagem para a vida adulta das crianças. É o momento em que devem seguir as regras e as tradições da religião judaica. Há todo um ritual preparatório.  Meninos e meninas passam vários meses estudando, preparando-se para esse grande dia que compreende uma cerimônia, geralmente seguida por uma celebração com comida, presentes e festa.
            “O Diário da irmã de Laura” (Callis, 2014), da canadense Kathy Kacer, tradução de Bárbara Menezes, fala sobre esse rito de passagem da menina Laura. Kathy Kacer mora em Toronto ( Canadá), é autora de livros juvenis e já recebeu diversos prêmios literários, entre eles o Canadian Jewish Book Award e o American Jewish Library Association Award.
 A história começa quando falta apenas três semanas para a cerimônia de “bat mitzvak” de Laura, a protagonista. Ela recebe uma missão do rabino Gardiner – devia procurar uma senhora que tinha uma história muito interessante para contar, deu o endereço e o número do telefone da senhora Mandelcorn.   
Laura telefonou para a senhora Mandelcorn, marcou o encontro e se dirigiu à residência indicada pelo rabino.  A conversa foi rápida e quando saiu da visita levava o diário de Sara Gittler, uma jovem judia que foi presa pelos nazistas e enviada com toda sua família para  o gueto de Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial. Ela pediu que a menina lesse a história e compartilhasse com todos os presentes no dia da cerimônia.  
            A princípio Laura  relutou em assumir esse projeto, já havia feito um trabalho de angariar dinheiro para crianças africanas que viviam em situação de risco na África e achava que isso era suficiente, esse era mais um desafio que teria de enfrentar.    
            À medida que ia lendo o diário de Sara, mais Laura se envolvia com a história, só pensava em terminar a leitura e preparar-se para apresentá-la no dia do seu rito de passagem.
            Toda noite, após o término das tarefas escolares, retomava o  diário de Sara e vivenciava aquele mundo árido da vida em um gueto, as dificuldades que a família de Sara encontrava para conseguir alimentos para garantir a sobrevivência. A família de Sara era constituída da mãe, do pai, um irmão, uma irmã e da avó. Seis pessoas viviam em um apartamento de apenas um quarto. 
            Como termina a história de Sara Gittler? O diário não esclarece. A última anotação traz a data de 9 de janeiro de 1943. A família é deportada para destino ignorado e Sara resolve deixar o diário enterrado no pátio do prédio.  Acreditava que um dia alguém aparecesse para desenterrá-lo.
            No dia do “bat mitzvak” de Laura, ela apresentou a história do diário de Sara Gittler, entre os presentes estava a senhora Mandelcorn.   O destino de Sara e da sua família o leitor só vai saber após a leitura desse livro que reúne com mestria ficção e realidade.
            Ressaltamos que os personagens de “O diário da irmã de Laura” são fictícios, mas há muitos elementos históricos verdadeiros no livro. O Gueto de Varsóvia existiu realmente durante a Segunda Guerra Mundial e era considerado o maior gueto judeu criado pelos nazistas. O gueto foi construído pelos próprios judeus em regime de escravidão em 1940. Em julho de 1942, os nazistas transferiram os judeus poloneses para o campo de concentração de Treblinka. No meio dos judeus presos pelos nazistas, destacava-se Januzs Korczak, médico e educador que, durante toda sua vida, acreditou que deveria haver uma declaração dos direitos das crianças no mundo. Ele foi diretor do Orfanato Judeu na Polônia e seu grande sonho era abrir um orfanato onde as crianças judias e católicas pudessem conviver fraternalmente.   Foi com base nos seus ensinamentos e nos seus escritos que a Organização das Nações Unidas adotou a Convenção dos Direitos das Crianças em 1989. 
            Nas últimas páginas do livro, encontramos Nota da autora, informações sobre Heróis do Gueto de Varsóvia e Histórias reais de gêmeos. 

                          NOTAS LITERÁRIAS E CULTURAIS

                          CONCURSO DE REDAÇÃO

            Da professora Sônia van Dijck, recebemos um e-mail com a redação do aluno Willian Junio Moreira de Souza do 9º. ano da escola municipal Anne Frank, bairro de Confisco, periferia de Belo Horizonte. A redação de Willian Junio foi vencedora de um concurso patrocinado pela Confederação Israelita do Brasil, Federação Israelita do Estado de São Paulo e Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. O concurso contou também com o apoio da Anne Frank House de Amsterdã. Com este prêmio, Willian viajou a Amsterdã para conhecer o Museu Casa de Anne Frank. Segue-se a redação premiada:
            A história de Anne Frank na atualidade
            Hoje, vejo a luta das pessoas por um mundo com igualdade, respeito e sem discriminação social. Vejo os negros lutando para conseguir seu espaço nas universidades, na política e nas empresas públicas; os indígenas lutando para preservar a sua cultura e até para não serem queimados em praça pública; as pessoas despertando e acordando para lutar pelos seus direitos.
            No período da segunda guerra mundial, as pessoas não tinham nem direito de lutar ou de reivindicar. Acredito que isso é pior: não poder lutar, não ter voz e não ter vez.
            Hoje, vejo que as pessoas têm mais oportunidades de lutar pelos seus direitos e liberdade de ir e vir.
            Nisso vejo que a luta de Anne Frank não foi em vão, pois devido ao seu exemplo, muitas pessoas entendem que reivindicar os seus direitos é uma ação e não o parar e esperar.
            A história de Anne Frank foi e é importante para a humanidade saber como é o sofrimento das pessoas em uma guerra, a tristeza com a morte de amigos, a falta de água, comida e luz.
            Além disso, é importante para nós valorizarmos mais a vida, aquilo que conquistamos, pois as pessoas que viveram durante a guerra, não tinham nada.
            Anne Frank nunca deve ser esquecida, pois uma simples história muda vidas. Não vamos deixar que esta história de crueldade se repita por meio do bullying, do preconceito, da discriminação, do racismo e muito mais.
            Todos querem mudar o mundo, o universo, mas ninguém dá o primeiro passo mudando a si mesmo.
            Mas, apesar disso tudo, eu ainda acredito na bondade humana.
            ERA UMA VEZ UM MENINO CHAMADO AUGUSTO  

            No dia 30 de setembro (terça-feira), às 19 horas, no Centro Cultural São Francisco (Igreja São Francisco), a Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro (ALANE/PB) promoverá uma sessão em homenagem a Augusto dos Anjos pela passagem dos cem anos da morte do poeta. Nessa mesma sessão, será lançado o livro “Era uma vez um menino chamado Augusto”, de Neide Medeiros Santos, e uma exposição de aquarelas do artista plástico Tônio. Sintam-se todos convidados. Haverá, ainda, lançamentos de dois livros de ensaios sobre Augusto dos Anjos.   

O rio de Pessoa e das pessoas

        




                                         O RIO DE PESSOA E DAS PESSOAS
                            (Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB)

            O TEJO é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
            Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
            Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
            (Alberto Caeiro. Poema XX. O guardador de rebanhos).


       O rio está sempre presente na vida das cidades e das pessoas.  Quando pensamos em Lisboa, vem logo a imagem do rio Tejo e lembramo-nos de Fernando Pessoa. Em Paris  é o Sena que nos deslumbra e o Danúbio inspirou Strauss a compor lindas valsas.  Recife, cidade cortada por rios, o Capibaribe e Beberibe serviram de inspiração para poetas de todos os tempos. O mesmo acontece em João Pessoa com os rios Sanhauá e Jaguaribe. Os dois rios pessoenses foram louvados e cantados por vários poetas paraibanos.
        É sobre rios que voltamos nossa atenção esta semana. Da editora FTD,  recebemos “Entre rios”, coletânea de textos que reúne sete escritores que escreveram a respeito de rios que marcaram suas vidas.  O livro foi organizado por Maria José Silveira e as ilustrações são de Roger Mello. Um destaque especial para a capa do livro – recortes vazados simulam a sinuosidade do leito dos rios Alguns escritores apelaram para a ficção; outros se mantiveram fiéis a fatos acontecidos na infância.      
        Domingos Pellegrini nasceu no Paraná (Londrina). “A sereia do rio Paraná” é um conto que descreve uma viagem de um menino com a mãe e o tio à procura do pai por terras paranaenses. Eles utilizam vários transportes para chegar ao destino almejado -  jipe, caminhão, barcos, botes e gaiolas. Na companhia da mãe e do filho vai um tio, resmungão e mal humorado, que reclama de tudo. Para o menino foi uma aventura cheia de encantos – até uma sereia ele viu na viagem pelo rio.
     Índigo é o nome artístico de Ana Cristina Ayer de Oliveira. Ela é natural de Campinas (SP). O texto “O enterro do rio Tietê” traz uma marca singular -  pessoas e rios convivem e conversam fraternalmente.  No velório do rio Tietê,  os comentários se referem à doença do rio e da sua morte. Há referências a outros rios, afluentes do Tietê, que também estão doentes – Pinheiros, Aricanduva, Capivari, Tamanduateí.
      Marcelino Freire nasceu em Pernambuco e hoje mora em São Paulo. “Ir embora” é um conto que se caracteriza por linguagem poética e pela   presença de termos regionais do Nordeste. O autor fala sobre despedida, abandono da Chapada das Mangabeiras (situada na divisa Goiás, Bahia, Piauí e Maranhão)  por conta do progresso. A predominância de diálogos confere um tom teatral ao texto.
      Márcio Souza, amazonense, comparece com “Canoagem no Solimões” e nos traz a lenda do Curupira aliada com a história de um jovem que gostava de fazer esportes radicais no rio.
       “Cy do Araguaia” é o conto de Maria José Silveira que é natural de Jaraguá, cidade histórica de Goiás. É um texto epistolar. Cy escreve uma longa carta para o namorado e recorda os dias que passaram juntos à margem do rio Araguaia, ressaltando fatos ligados às memórias de sua infância.
       Maria Valéria Rezende nasceu em Santos (SP) e está radicada há muitos anos na Paraíba. “O amor é correnteza” é um texto que fala do amor entre dois adolescentes – Pedro e Iara. O cenário do rio São Francisco emoldura a história e Pedro rememora as lendas contadas pelos barqueiros e pescadores – “deliciosas e apavorantes histórias do sono do rio, do Negro – d´água, do Minhocão, dos afogados, das grutas e dos castelos submersos lá no fundo, que embalaram suas noites de criança” (2014: p.104).   
       O último texto é do gaúcho Moacyr Scliar – “Os piratas do Guaíba”. Scliar se volta para a infância e apresenta uma história cheia de ternura entre um filho e o pai. Uma mentira criada pelo menino na escola – no quintal da sua casa havia um tesouro enterrado – fez o pai enterrar no quintal uma arca de madeira velha, colocar algumas moedas e objetos antigos, tudo para que o filho não recebesse a alcunha de mentiroso. No domingo, diante dos colegas, o tesouro foi desenterrado e a arca foi encontrada. O que deixou o menino mais feliz não foi o fato dos colegas terem encontrado um tesouro e a mentira se tornar verdade,  mas descobrir “o afeto do pai”.
     Para concluir essas histórias de rios, recorremos a Maria José Silveira e citamos esses versos:
            Para preservar os rios é preciso conhecê-los.
            E, se os conhecemos, fica muito fácil amá-los.

            NOTAS LITERÁRIAS E CULTURAIS

            Se para preservar os rios é preciso conhecê-los, vamos transcrever uma carta de um aluno do Colégio Apoio (Recife) que fez uma viagem pelo rio Capibaribe na companhia de professores e colegas. Como tarefa dessa atividade extra curricular, ele   escreveu uma carta ao Prefeito da cidade. O aluno é Davi Pessoa, tem 11 anos, cursa a 5ª série do Ensino Fundamental. Procuramos respeitar a linguagem descontraída da criança e não fizemos nenhuma interferência no texto.

            Prezado Prefeito,

                Olá, eu sou um aluno do Colégio Apoio e lhe envio esta carta apresentando críticas e sugestões em relação ao rio Capibaribe que corta a nossa cidade Recife. Espero que me ouça com atenção, pois estou tratando de um assunto importante.
Como todos sabem, o rio Capibaribe está extremamente sujo. Há muita poluição e o que era pra ser um orgulho da cidade acaba sendo uma vergonha. É claro que eu não posso colocar toda a culpa em cima de você, pois não é você que suja os rios, são os cidadãos, mas você é o Prefeito e poderia fazer algo.
O rio Capibaribe não passa apenas pelo Recife, ele tem 270 quilômetros de extensão e passa por vários municípios de Pernambuco, por isso não somos só nós que sujamos o rio. Você poderia se unir com os outros prefeitos e até com o Governador para fazer um projeto de despoluição.  Assim o rio chegaria à nossa cidade bem mais limpo.
Eu li num livro “Um rio de Gente” que antigamente era comum tomar banho no rio Capibaribe. Quem sabe isso não possa se repetir?
Com tantos carros nas ruas, acho que você poderia promover também o transporte fluvial. Eu sei que tem um projeto, mas ele anda meio parado, deveria ser uma prioridade. Seria até mais seguro que as bicicletas, pois ainda hoje morrem muitos ciclistas no trânsito do Recife.
Se Recife é a “cidade das pessoas”, por que não pode ser também a cidade dos rios?
Atenciosamente,
DAVI MEDEIROS PESSOA


Nota: Os rios que cortam a cidade de João Pessoa também estão poluídos. Fica a sugestão para os professores – dar um passeio com os alunos pelo rio Sanhauá e pedir que escrevam cartas para o Prefeito sugerindo providências. “Se Recife é a cidade das pessoas,” João Pessoa tem pessoa até no próprio nome. 

sábado, 16 de agosto de 2014

A memória afetiva de Orie



 A MEMÓRIA AFETIVA DE ORIE  
(Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB)

O longo som
            do rio
            frio.

            O frio
            bom
            do longo rio.

            Tão longe,
            tão bom,
            tão frio.
            (Cecília Meireles. Rio na sombra).


            Da editora Pequena Zahar, recebemos o bonito livro “Orie” (2014), texto e ilustração de Lúcia Hiratsuka. Dessa autora já conhecíamos outros livros, entre eles o premiadíssimo “Histórias tecidas em seda” (Ed. Cortez, 2007), que foi lançado em João Pessoa durante Feira Japonesa no Espaço Cultural em 2008.
            Lúcia Hiratsuka é neta de japoneses que vieram para o Brasil nas primeiras décadas do século XX. Ao chegar ao Brasil, a família foi morar no sítio “Asahi”, interior de São Paulo. “Asahi” significa “sol da manhã”. Foi nesse sítio que Lúcia nasceu.  Quando contava dez anos, a família se mudou para Duartina, considerada a “capital da seda”. Mais tarde, transferiu-se para São Paulo onde Lúcia  estudou Belas Artes.
            Em 1988, viajou para o Japão. Durante um ano fez curso de aperfeiçoamento em ilustração de livros infantis na Universidade de Fukuoka. Atualmente, além de escritora e ilustradora,  é professora de Artes, na cidade de São Paulo.   
            No site da escritora, ela explica como aprendeu a ler. O avô foi seu primeiro professor. Os livros que havia na casa eram, em sua maioria, escritos em japonês, havia também alguns “ehons” (livros com ilustração) e foi a partir desses livros que nasceu o desejo de escrever e ilustrar.     
 Além desse avô, professor das primeiras letras, há um destaque especial para a figura da avó, uma excelente contadora de histórias reais e ficcionais. Certa vez, Lúcia perguntou à avó se ela gostaria de retornar ao Japão e ouviu esse depoimento:
Acho que não vou reconhecer mais o lugar que eu nasci, fica na minha memória, continua do jeitinho que eu nasci. Será um eterno furusato.  Furusato é terra natal em japonês.     
            “Orie”, título do livro, é o nome da avó.   O livro se reporta ao dia a dia de Orie e aos acontecimentos narrados por essa avó querida que povoou a infância da neta com narrativas de contos fantásticos, não faltando fatos ligados à cultura japonesa e à vida dos seus familiares.
            A história se passa no Japão no tempo em que os barqueiros camponeses  navegavam pelos rios para vender as mercadorias nas cidades. E a viagem de barco era marcada por surpresas e alegrias, principalmente para uma menininha que estava descobrindo o mundo.
            Neste livro, o barco tem a força simbólica de um ninho aconchegante. Isso está explícito no próprio texto:
            “O barco parecia um ninho. Pai, mãe, Orie que nem passarinho”.
            “O tempo passa, passa e passa...” a menina cresce, seus passos crescem também, Orie se torna uma mocinha e uma nova vida a espera.  A memória afetiva de Orie  remete a um lugar repleto de carinho e de aconchego, e o rio tão frio, tão bom, sombrio, ficou para longe, ficou no país distante, no país do sol nascente. 
            Um rio, sempre um rio acompanha a vida dos habitantes de pequenas e de grandes cidades. Por mais insignificantes que sejam os rios têm suas histórias, seus encantos, está presente na lírica dos poetas e de escritores de nações distintas e de várias épocas.
Em que parte do Japão estaria situado o rio que os pais de Orie navegavam? Não importa. Era um rio como outro qualquer, mas que deixou profundas marcas na menina que via no rio um lugar do sonho e do devaneio. O rio japonês de Orie não é o mesmo do poema de  Cecília Meireles, mas os dois guardam afinidades poéticas.
            Os livros de Lúcia Hiratsuka trazem a marca da simplicidade e se caracterizam por grande beleza literária.  E vem esta explicação: “A prática do sumiê e do haicai me levaram a buscar o simples e o essencial”.
            E foi com a avó que viveu 104 anos que a escritora aprendeu que “furusato” é onde a gente nasce, mas também é o lugar aonde vamos em pensamento, quando estamos tristes ou felizes. Hoje, ela tenta recriá-lo através dos desenhos e das palavras como neste bonito livro cheio de sutilezas e de elementos simbólicos.
            ( Texto publicado no jornal “Contraponto”. Paraíba, 15 a 21 de agosto de 2014).
           

sábado, 19 de julho de 2014

Monteiro Lobato para adultos



MONTEIRO LOBATO PARA ADULTOS
(Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB) 

            Quem tem notícia, apenas, da obra de Lobato feita para crianças, precisa conhecer o que ele escreveu destinado aos adultos (e aos brasileiros todos, ele que, aflitamente, queria salvar o país) para entender toda a extensão da sua importância na História do Brasil.
            (Ziraldo. Texto da 4ª capa do livro “Monteiro Lobato, livro a livro”. Obra adulta).

            Quando falamos em Monteiro Lobato, lembramos sempre do Sítio do Picapau Amarelo e dos personagens criados por esse escritor polêmico que é amado por muitos e criticado por alguns.  Emília, Narizinho, Pedrinho, o Visconde de Sabugosa, Dona Benta e tia Nastácia são criaturas de papel que povoaram o imaginário de muitas crianças brasileiras, mas Lobato não foi apenas um escritor de obras para crianças, foi contista, cronista, jornalista, editor, publicitário e artista plástico.
 Marisa Lajolo, professora e pesquisadora da UNICAMP, grande estudiosa de Lobato, e João Luís Ceccantini, professor da UNESP e leitor votante da FNLIJ, organizaram o livro “Monteiro Lobato, livro a livro (obra infantil)”- UNESP/ Imprensa Oficial que ganhou em 2009 o prêmio Jabuti e foi eleito o Livro do Ano. Estava faltando um olhar crítico mais detalhado sobre a obra adulta.  O livro “Monteiro Lobato, livro a livro (obra adulta)” publicado em 2014, pela editora da UNESP, organizado por Marisa Lajolo, veio preencher a lacuna de análises dos livros deste escritor voltados para o público adulto.
Em 1945, Lobato organizou uma série (coleção) com todos os seus livros para adultos e chamou de “Literatura Geral”. Era composta por treze volumes com dezesseis títulos e abrangia gêneros diversos. A coleção continha os seguintes livros: 1. Urupês, 2. Cidades mortas, 3. Negrinha, 4. Ideias de Jeca Tatu, 5. A onda verde e o Presidente negro, 6. Na antevéspera, 7. O escândalo do Petróleo e do Ferro, 8. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital, 9. América, 10. O Mundo da Lua e Miscelânea, 11-12. A barca de Gleyre (2 volumes), 13. Prefácios e Entrevistas.
Nessa série encontram-se livros de contos, uma novela, um romance, coletâneas de artigos de jornais, prefácios, vasta correspondência, impressões de viagem, anotações esparsas, documentos de campanhas políticas, entre outros.
Na apresentação de “Monteiro Lobato, livro a livro. Obra adulta”, a organizadora destaca que Lobato foi um escritor prolífero.  Ao longo dos 43 anos que separam sua primeira publicação de grande impacto junto ao público o artigo “Velha praga”, estampado em O Estado de S. Paulo (1914), escreveu muitos livros, foi tradutor e periodista.   “É um autor que, para além da porteira do sítio, criou um Jeca Tatu, uma Negrinha, um Presidente Negro e um Zé Brasil”.
Para organizar este livro, a ensaísta convidou vinte e oito especialistas da obra de Lobato que se debruçaram sobre a coleção “Literatura Geral” e trouxeram contribuições valiosas.  O tema do negro na obra de Lobato já gerou discussões. Ele está presente neste livro com dois excelentes ensaios – o de Milena Ribeiro Martins – “Negrinha” e “Os negros e a história fora de si”, de Hélio de Seixas Guimarães.  Os dois estudiosos apresentam uma visão crítica da presença do negro na literatura lobatiana de modo sério e competente.    
Não seria possível resumir os vinte e oito artigos apresentados, assim procuramos pinçar algumas opiniões deste escritor destemido que falava sem medo de dizer a verdade.
Monteiro Lobato foi acusado de comunista, materialista e ateu. Certa vez, indagado por um jornalista se era socialista, deu esta resposta: “não sou coisa nenhuma a não ser um observador da história.”
No vigésimo quinto aniversário de Urupês (1943), concedeu uma entrevista a afirmou:
“– Já não me interesso por coisa nenhuma. Meus contos foram quase todos vingancinhas pessoais, desabafos. Quando eu sentia necessidade de vingar-me de um sujeito qualquer, não sossegava enquanto não o pintasse numa situação ridícula ou trágica, que me fizesse rir.”
 Lobato teve inúmeros problemas com a censura. Era conhecido como alguém que não tinha “papas na língua”. Na entrevista dada ao repórter Tulman Neto, do Diário de São Paulo, em março de 1945, comenta sobre um homem preso por ler livros.
“- Conheci na Detenção um comunista de terrível fama [...] Chamava-se José Crispim [...] Mais tarde fui saber que fora condenado a oito anos de prisão... oito anos pelo crime de querer instruir-se e ter livros em casa”.  
Cada capítulo leva o leitor a encontrar a história de um livro e cada uma dessas histórias contém muitas outras histórias. As múltiplas visões apresentadas conduz o leitor a conhecer melhor a personalidade múltipla de Lobato e o seu desencanto no fim da jornada.    Em todos os textos transborda o escritor que não sabia calar diante das injustiças, que lutava em prol da Verdade, da Democracia e da Vida.    
As pesquisas e os ensaios, na opinião de Marisa Lajolo, proporcionam “novos olhares não apenas sobre a produção lobatiana, mas talvez também para a produção cultural brasileira das primeiras décadas do século XX.”
Depois de publicados “Os filhos de Lobato. O imaginário infantil na ideologia do adulto” (1977), de José Roberto Whitaker Penteado, “Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia” (1977), de Carmen Lúcia de Azevedo, Márcia Camargos e Vladimir Sacchetta, “Monteiro Lobato: livro a livro (obra infantil)” (2009), organizado por Marisa Lajolo e João Luis Ceccantini, e biografias deste escritor que soube escrever para todos os públicos parecia que não havia nada mais a dizer.   Ledo engano! Os grandes romancistas, contistas e poetas, como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Cecília Meireles e Augusto dos Anjos são inesgotáveis.
Este artigo é dedicado a Luciano Mariz Maia e Simão Farias Almeida, lobatólogos paraibanos.
( Publicado no jornal “Contraponto”. Paraíba, 18 a 24 de julho de 2014, B-4.