domingo, 12 de novembro de 2017

Um amigo para sempre está de volta

Um amigo para sempre” está de volta
            (Neide Medeiros Santos – Leitora Votante – FNLIJ/PB)

                         Cada pássaro,
            Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
                        Cada pássaro é um milagre.
            (Manuel Bandeira. Preparação para a morte).  

 O livro de Marina Colasanti “Um amigo para sempre” (Ed. FTD, 2017), com ilustrações de Guazelli, ganhou nova roupagem e não se perdeu na volta. A 1ª edição do livro foi em 1988 e retorna depois de quase 30 anos, vem com ares de livro artesanal, bonito e enriquecido com o trabalho artístico de Guazelli. Este livro conta a história de uma amizade entre um homem e um pássaro.

            Para Fanny Abramovich, é um conto poético que entrelaça história, biografia, parábola e poesia. Encanta por sua refinada simplicidade. É uma história real: a história da vida do escritor Luandino Vieira que nasceu em Portugal, mas radicou-se ainda criança em Angola e muito lutou pela liberdade do país que o recebeu como filho. Por suas ideias consideradas revolucionárias pelo regime salazarista, pelo desejo de ver Angola livre de Portugal, Luandino ficou preso por vários anos em Luanda, depois foi enviado para o campo de concentração de Tarrafal, situado na Ilha de Santiago, em Cabo Verde.  Os dois últimos anos de prisão foram passados em Lisboa, em prisão domiciliar.  Com a Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 que pôs fim ao regime de Salazar, Luandino adquiriu liberdade e Angola ficou livre do jugo português.    

             José Luandino Vieira é pseudônimo literário do autor, nasceu em Ourém, Portugal.  Seu nome verdadeiro é José Mateus Vieira da Graça, mas ficou conhecido internacionalmente por Luandino Vieira.  É autor de inúmeros livros, entre eles muitos livros de contos, alguns romances, novelas e um livro de literatura infantojuvenil – A guerra dos fazedores de chuva com os caçadores de nuvens.

             Um amigo para sempre surgiu de um encontro entre Marina Colasanti e Luandino Vieira em Cuba. Nesse encontro, o escritor falou sobre o período que esteve preso e a amizade que fez com um pardal que vinha visitá-lo todos os dias quando ia tomar banho de sol.
 
            Marina Colasanti sempre revelou paixão por pássaros e encontrou um bom motivo para escrever esse livro.  Na apresentação, ela revela que é “uma estória tão bonita que eu gostaria de tê-la inventado”.

            Porque pensava diferente dos que governavam seu país, aquele homem foi preso, assim começa o livro. Todos os dias era a mesma rotina – vinham buscá-lo para tomar banho de sol, era a hora da liberdade e a hora que o pensamento voava como os pássaros. Deitado na grama sonhava, sonhava com a liberdade do seu povo, de um povo que aprendera a amar como se ali tivesse nascido, aquele era o país que havia escolhido para morar e sofria com a falta de liberdade.

            No início, levava um livro para ler, depois preferiu ficar olhando para o céu, para as nuvens, para o verde das árvores que teimavam em pousar suas folhas sobre o muro alto da prisão.  As nuvens, o azul do céu, os passarinhos que passavam voando, tudo era motivo para contemplação e enlevo.

            Resolveu levar um pedaço de pão e ficar mastigando bem devagar. Foi por causa desse pedaço de pão que um passarinho se aproximou do homem. Ele queria as migalhas, o homem observou o interesse do pássaro e de forma bem delicada jogou um pedacinho de pão para o pássaro que logo o recolheu. Todos os dias era a mesma coisa – homem e pássaro dividiam o pão. A partir daí se tornaram amigos – existia uma alegria naquele encontro, alegria do homem e do pássaro, existia a alegria do encontro.

            E o passarinho continuou se aproximando cada vez mais do homem. Passaram-se meses e um dia o passarinho veio comer na sua mão. A notícia se espalhou na prisão – aquele preso político havia domesticado um passarinho Ninguém imaginava que tinha sido fruto de muita paciência, de muita espera. As coisas não se conquistam de forma fácil, foi um longo caminhar.

            Passou o verão, chegou o inverno, mas naquele país o inverno não era rigoroso, daí o espanto do homem no dia em que o passarinho não veio. Ficou aflito. O que teria acontecido? Esperou mais alguns dias, sempre na expectativa de vê-lo outra vez. O passarinho não veio durante semanas, não veio nunca mais. E o homem foi invadido por uma tristeza muito grande, perdera seu amigo.

            Mas como tudo passa, conformou-se. A tristeza foi substituída por outro sentimento e associou o destino do pássaro a seu próprio destino – um dia ele sairia daquela prisão, iria para longe, seria livre e o sol voltaria a brilhar sem a presença de muros e grades, iria sentir o voo da liberdade.

            Para ilustrar esse livro, Eloar Guazelli utilizou sutilezas que combinam com a história. Na capa, vemos um pássaro, folhas de árvores e uma mão que parece chamar o pássaro. As ilustrações internas são simples, poucas cores – nuvens, muros altos, arames farpados, folhas ao vento e a figura constante de um passarinho.

            As páginas do livro são coloridas, mas com tons muito discretos- verde, azul, róseo, apenas um tom mais vibrante – um vermelho alaranjado aparece no meio desses tons suaves. Há outro detalhe que chama a atenção do leitor – todas as folhas do livro vêm coladas à maneira dos livros antigos.  Fui invadida por uma vontade de abri-las, preferi espionar o interior e preservá-las, não quis maculá-las.    
            
            Os textos de Fanny Abramovich, Benjamim Abdala Junior, Ruth Rocha e de Gauzelli que estão encartados no livro ajudam a compreender melhor o trabalho literário de Marina Colsanti e a vida do idealista  Luandino Vieira.

           
            NOTAS LITERÁRIAS E CULTURAIS
EDINÓLIA MARTHA DE SOUZA – UMA LEITORA MUITO ESPECIAL

            Uma visita à biblioteca Durmeval Trigueiro, na Fundação Casa de José Américo, e a descoberta de um tesouro. Familiares de Edinólia Souza doaram à biblioteca Durmeval Trigueiro todos os livros de literatura de quem passou a vida na companhia de bons livros. Há preciosidades, como uma edição de “Crime e Castigo”, de Dostoievski, uma tradução do francês de Raquel de Queirós, com ilustrações de Tomás Santa Rosa. Outros livros, todos muito bons, nos levam a recordar de Edinólia e de sua figura simples, reservada.

 Lembro-me muito bem de Edinólia comparecendo aos lançamentos de livros nas livrarias de João Pessoa, na Fundação Casa de José Américo, no Centro Cultural Joacil de Brito Pereira.   Quando lançava meus livros convidava-a, e ela sempre se fazia presente. Descobri, no meio de valiosas relíquias, um livrinho fino que publicamos em homenagem a Violeta Formiga - lá estava um oferecimento carinhoso e um marcador de livro artesanal, confeccionado pelo artista plástico Miguel Bertollo – três singelas violetas, pintadas em aquarela na companhia desses versos: “Eu amo o dia porque dele surge as madrugadas”. 
 
Edinólia me disse certa vez que quando lia um livro de um escritor que gostava, procurava comprar todos os livros daquele autor.  Nesse rico acervo, encontram-se vários livros de José Saramago, Mário Vargas Llosa, Mia Couto, Virgínia Woolf, Fernando Pessoa, Drummond. A bibliotecária Nadígila Camilo e bibliófilo Francisco de Assis me chamaram a atenção para algumas curiosidades guardadas dentro dos livros – recortes de jornais, fotografias dos escritores, breves comentários. As marcas de grifos nas frases, nos parágrafos dos livros indicam que todos foram lidos.  É muito bom que esse acervo esteja abrigado na biblioteca da Fundação Casa de José Américo.  São 538 títulos à espera de novos leitores.



                        POEMA DA SEMANA
                       
                        A vida é um milagre.
                        Cada flor,
                        Com sua forma, sua cor, seu aroma,
                        Cada flor é um milagre.
                        Cada pássaro,
                        Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
                        Cada pássaro é um milagre.
                        O espaço infinito,
                        O espaço é um milagre.
                        O tempo infinito,
                        O tempo é um milagre.
                        A memória é um milagre.
                        A consciência é um milagre,
                        Tudo é milagre.
                        Tudo, menos a morte.
                        - Bendita a morte que é o fim de todos os milagres.

                        ( Manuel Bandeira. Preparação para a morte).
                       

                        

sábado, 4 de novembro de 2017

E o poeta virou guriatã

E O POETA VIROU GURIATÂ

(Neide Medeiros Santos – Leitora votante – FNLIJ/PB)
            As pessoas não morrem, ficam encantadas.
            (Guimarães Rosa. Do discurso de posse na ABL).

O poeta Marcus Accioly virou guriatã e partiu deixando saudades e muitos livros de poesia, alguns dedicados à literatura infantil, como o premiado Guriatã: um cordel para menino que teve a 1ª edição em 1980 pela editora EBAL. Seguiram-se outras edições deste livro.

Guriatã: um cordel para menino é uma composição literária de caráter telúrico.  Composto de 91 poemas e cinco notas que explicam a gênese do livro, o poeta procura resgatar a infância perdida, o “país-paraíso” do engenho Laureano. O xilógrafo Dila, o ilustrador, traduziu plasticamente o conteúdo do texto. Modalidades de cantoria (martelos, toada-alagoana, canções suspirosas, desafios, mourões); poemas dialogados (de um Guriatã-de-coqueiro, da volta do Guriatã, dos dois Guriatãs, do retorno de Guriatã, e do Guriatã por último) e poemas independentes, de grande expressividade lírica estão representados por (do-trem-de-ferro, dos elementos).  O grande poema se encerra com um acróstico com o nome do poeta.  

 O “locus amoenus” da região canavieira não é privilégio da zona da mata pernambucana nem paraibana (veja-se José Lins do Rego e os romances do ciclo da cana-de-açúcar) está presente na região da Provence, tão bem retratada por Paul Cézanne em suas telas; nos riachos e rios da Champagne, nos escritos poético/filosóficos de Bachelard; no mundo encantado do sitio do Picapau de Monteiro Lobato; no país de São Saruê, do poeta popular Manoel Camilo dos Santos.

Para ser fiel às origens populares, o livro foi ilustrado com xilogravuras do artista pernambucano – Dila. As xilogravuras impressas, em quase todas as páginas, seguem a técnica tradicional da xilogravura (preto e branco). O “poeta da mão”, parar usar a expressão de Gaston Bachelard, caminhou pari-passu com Accioly que descreve paisagens, animais, mitos populares e eruditos.  Dila procura dar “sopro de vida” a tudo que povoa a mata norte de Pernambuco.

Nos livros de poesia de Accioly, estão presentes o cordelista e o poeta erudito. Na entrevista concedida ao jornalista Mário Hélio (Jornal do Commercio, Recife, 3 de março de 1995, p.10), ele assim se expressou:
O cordel foi a literatura da minha infância, os folhetos do Engenho Laureano, e a cidade de Aliança. Tudo o que consegui com a poesia (e devo tudo a ela) foi encontrar o possível equilíbrio entre a lucidez e a loucura, entre a tradição e a vanguarda, entre a inspiração e a transpiração, entre o popular e o erudito.
[...]
            Sou, como já disse, um profissional do canto. Nada fiz que não fosse poesia. O resto é um arremedo que acabará no silêncio.

            Após essas pequenas digressões, que consideramos válidas para entender um pouco da poesia e do poeta, voltemos ao livro.

            Guriatã: um cordel para menino é uma “história-estória” de dois meninos, que se estrutura seguindo a ordem de um poema épico: prólogo, invocação às musas, episódios, epílogos.
            Todos os poemas do livro vêm numerados por algarismos romanos. O primeiro poema, um dos mais longos do livro, traz o subtítulo de “prólogo” e contém nove estrofes distribuídas em sextilhas; o segundo, com o subtítulo “da família de Sucram”, é formado por quatro estrofes com versos em oitavas. Nesses dois poemas, temos a apresentação dos protagonistas Leunam e Sucram. Esses nomes incomuns resultam dos anagramas dos nomes Manuel e Marcus. Manuel foi um amigo de infância do poeta que morreu muito cedo. No reino do faz de conta, Leunam se transformou em guriatã.

            O terceiro poema apresenta um corte narrativo, traz o subtítulo “Guriatã de coqueiro” e nele aparece a terceira personagem importante da história – o pássaro Guriatã. No decorrer da narrativa poética, observamos que Guriatã passa a integrar a história e recebe o mesmo tratamento dado aos meninos Sucram e Leunam.

            Um dos poemas mais emblemáticos do livro é “do-trem-de-ferro”, uma homenagem ao avô do poeta – José Pedro Bezerra de Mello (Dedé). Esse avô tão querido e admirado pelo neto morreu enfartado na estação ferroviária de Aliança quando Accioly contava dez anos. Com a morte do avô, acabou-se também a infância do menino.

            O poema “do-trem-de-ferro”, visto como um todo, é formado por um refrão que se repete cinco vezes em cinco estrofes com sete versos em redondilha menor. O conjunto, no total de 40 versos, ordena-se de forma simétrica, dando-nos a impressão de um trem com vários vagões encaixados verticalmente. As estrofes com sete versos cada uma seriam os vagões que conduzem os passageiros e os refrões seriam os elos que unem os vagões. 

             Transcrevemos uma das estrofes do poema “do-trem-de-ferro” para que o leitor sinta como ele se estrutura.
            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o grito da ponte
            debaixo do trem,
            é o vento que chora
            por morte de alguém,
            é o choro das almas
            que dizem amém.

            Quem grita na noite?
            [...]
            Este poema, na sua íntegra, foi recitado pelo poeta Marcus Accioly durante o Congresso Internacional de Literatura Popular realizado na Fundação Casa de José Américo em 2005. Naquela ocasião, Marcus Accioly compareceu para o lançamento do livro “Guriatã: uma viagem mítica ao país-paraíso”.

            Um lembrete para aqueles que desejarem adquirir o livro “Guriatã: um cordel para menino” existe uma nova edição da editora Bagaço.
( Publicado no jornal “Contraponto”. Paraíba, 27 de outubro de 2017).
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            Nota: O jornal “Contraponto” voltou a circular e com ele o blognastrilhasdaliteratura volta com novidades. Toda semana será publicado um poema de autor brasileiro.  Como leitora e amante da boa poesia, escolheremos poemas que nos cativam pela beleza poética e sensibilidade. Para inaugurar essa nova etapa, segue o poema “trem-de-ferro”, do poeta pernambucano Marcus Accioly, desaparecido recentemente. O poema será sermpre publicado na íntegra.

                        XXXIII - do-trem-de-ferro

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o eco do grito
            do apito do trem,
            é a boca-da-noite
            que grita também,
            é o eco do eco
            que ecoa no além.

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o grito da ponte
            debaixo do trem,
            é o vento que chora
            por morte de alguém,
            é o choro das almas
            que dizem amém.

            Quem grita na noite?
           
            Não vejo ninguém,
            é a boca-do-túnel
            na frente do trem,
            é o grito sem grito
            de um eco que vem
            dos montes que aos montes
            ecoam mais cem.

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o sonho-barulho
            das rodas do trem,
            é a luz de uma estrela
            que tange belém
            no sino-silêncio
            que a noite não tem.

            Quem grita na noite?

            Não grita ninguém,
            é o trem dos fantasmas
            nos trilhas sem trem,
            é a voz dos dormentes
            que às vezes contém
            o grito da vida
            que a morte detém.

( Do livro: Guriatã: um cordel para menino).