quarta-feira, 15 de junho de 2016

Cobra Norato e outras miragens: mito, folclore e poesia

(Neide Medeiros Santos – Leitora Votante FNLIJ/PB)

Que é um mito? Uma narrativa de História fantástica, desfigurada pela credulidade, agindo no sentido do maravilhoso.
(Luís da Câmara Cascudo. Literatura Oral no Brasil).

 É um erro pensar que a literatura infantil não tem compromisso com a pesquisa, com a leitura de livros teóricos. No universo da literatura dirigida às crianças, encontramos muitos livros que revelam intertextualidade com os contos de origem popular, com a poesia de cordel.

A escritora Eloí Bocheco é apaixonada pela literatura oral e de cunho popular, muitas vezes a autora recorre aos livros de Câmara Cascudo para escrever seus textos destinados às crianças.  “Batata cozida, mingau de cará”, que integra essa linha de valorização do popular, foi premiado pelo MEC e integrou a coleção Literatura Para Todos.

Se fizermos um exame mais acurado na vasta produção da literatura infantojuvenil da autora catarinense, iremos nos deparar com outros títulos que estão intrinsecamente ligados às brincadeiras infantis, ao folclore, à tradição oral e citamos “Pomar de brinquedo”, “Cantorias de jardim”, “Tá pronto, seu lobo? e outros poemas”.
   
Em 2016, pela editora Habilis, Eloí publicou “Cobra Norato e outras miragens”, texto ilustrado por Dane D´Angeli, que vem comprovar mais uma vez o que afirmamos a respeito da recorrência aos temas folclóricos.  A autora foi buscar em Câmara Cascudo, Leonardo Boff e Carlos Rodrigues Brandão os elementos que deram suporte para escrever este livro - “em versos singelos, de sincera afeição” - as miragens que envolvem certas histórias ouvidas ou lidas na infância.
     
A respeito desse último livro, a autora afirma que há muito tempo acalentava o desejo de realizar esse sonho – “celebrar poeticamente algumas figuras do folclore brasileiro”, para isso recorreu às histórias guardadas na memória. 
 Dezessete poemas falam, através de versos, sobre elementos ligados ao folclore, às lendas, aos mitos de origem popular São poemas narrativos, contam uma história, como acontece com “Cobra Norato” e “Negrinho do pastoreio”.
    
“Cobra Norato” é o primeiro poema do livro. Câmara Cascudo registra essa história no livro “Geografia dos mitos brasileiros” e apresenta duas versões, explica que a origem desse mito é da região amazônica (Pará). Honorato ou Norato era ao nome do moço que durante o dia era cobra, em noites de lua cheia se transformava em moço bonito desejado pelas moças. Como sabia dançar bem o danado! No texto poético, ganha mais beleza:

Surgia nos bailes e
dançava até o amanhecer,
- “Quem é o belo cavalheiro?” –
as gentes queriam saber.

Um clima de mistério envolve o rapaz que ficava envaidecido com a curiosidade que despertava nas jovens.  Honorato tinha dois destinos – um de gente, outro de bicho. Era necessário descobrir esse mistério para Honorato voltar à forma humana.

“Negrinho do pastoreio” está registrado no livro de Câmara Cascudo como uma lenda tipicamente do Rio Grande do Sul. Em seis estrofes, Eloí resume a lenda em versos. Câmara Cascudo louva a tecedura admirável dessa lenda e considera-a de “intensa e comovedora ação dramática” Segue-se o poema de Eloí Bocheco:

Negrinho do Pastoreio
foi açoitado
por causa do cavalo
que sumiu no prado
no meio do formigueiro
seu corpo foi jogado.

            O que nos chama a atenção nesse poema é o poder de concisão, com apenas seis versos toda história do negrinho foi contada, seguem-se outras estrofes, mas o essencial está expresso com poucas palavras na primeira estrofe, é o poder inerente do poema - dizer o muito com poucas palavras.

Selecionamos esses dois poemas para demonstrar que as lendas e os mitos circulam pelo Brasil em diferentes versões. “Cobra Norato” está ligado à região amazônica, “Negrinho do pastoreio” ao Rio Grande Sul. Os mitos e lendas atravessam as fronteiras regionais.
  
“Cobra Norato e outras miragens” me levou ao encontro de “Guriatã: um cordel para menino”, do poeta pernambucano Marcus Accioly Os dois poetas, Bocheco e Accioly, se utilizaram das vozes dos folcloristas, pesquisadores, estudiosos da nossa cultura e das nossas raízes que alimentam o imaginário popular brasileiro para cantar em versos, com força poética esses mitos e as lendas.
   .
NOTAS PARAIBANAS
“A Scena Muda” e outras cenas.

Luiz Augusto Paiva da Mata publicou pela editora All Print em 2014 o livro “A saudade e outras manias do coração”, livro de contos, que teve a participação de Hérmany Menezes, responsável pelas fotografias e as ilustrações.  Nove contos integram a coletânea e todos trazem o resgate de um tempo que deixou as marcas da infância e da adolescência do contista. São contos memorialistas e chamou-nos a atenção o primeiro conto do livro – “A Scena Muda”.

Muitos leitores vivenciaram essa experiência relatada pelo autor. O cinema é o foco principal desse conto e a revista “A Scena Muda” o motivo condutor de toda trama.  Os fatos apresentados referem-se à fase infantil do contista. Sua vida de menino, amante do cinema, morando no interior paulista não era diferente do que vivenciou João Batista de Brito, colunista do “Contraponto”, em João Pessoa. Viveram em locais distintos, mas a “scena” apresenta semelhanças.
  
Quem não se lembra de uma irmã mais velha ou de uma tia que colecionava álbum com retratos dos artistas de cinema que faziam sucesso nos anos 1950/1960?  O contista traz de volta esse passado – a coleção de retratos de artistas famosos do mundo do cinema, como Errol Flynn, Gary Cooper, Ginger Rogers, Ava Gardner, Robert Taylor e muitos outros, pinçados da revista “A Scena Muda”, todos esses ídolos estavam pregados nas paredes dos quartos do menino Luiz Augusto e da irmã Elza.   

À noite quando ia dormir, as artistas desciam da parede e vinham conversar com o menino e as conversas imaginárias se prolongavam até o sono chegar. Elza também conversava com os artistas quando todos estavam recolhidos.

O pai, um militante do Partido Comunista, homem trabalhador e severo, não gostava das manias dos filhos. Reverenciar artistas de cinema! “Tudo aquilo era coisa do imperialismo americano”. A irmã era apaixonada por Errol Flynn, Luiz Augusto adorava Ava Gardner, não compreendia porque uma mulher tão bonita era maltratada pelo marido, Frank Sinatra. A artista Ginger Rogers era outra que habitava no seu coração.  A vida dos artistas fazia parte da vida do menino.
 
Veio a notícia de mudança, iriam morar em Taubaté, e com a mudança os retratos dos artistas foram rasgados pelo pai em um momento de irritação.  Para aumentar a tristeza dos filhos o pai ainda recomendou - na nova casa nada de retratos de artistas nas paredes.
  
Luiz Augusto é natural do Rio de Janeiro, passou parte da infância em São José dos Campos e Campos do Jordão, depois foi morar em São Paulo, atualmente reside em João Pessoa.
  
    (Publicado no jornal “Contraponto”. Caderno – B, Paraíba, 13 a 19 de maio de 2016).