domingo, 31 de outubro de 2010

Tesouro escondido no livro “Mil e uma noites”


Tesouro escondido no livro “Mil e uma noites”
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

Com arte, a nossa vida fica mais rica, e a gente fica mais feliz.
(Maté)

As histórias contadas por Sherazade, no livro “Mil e uma noites”, foram recriadas por muitos escritores. Cada um procurou dar um toque pessoal a esses contos. Quem não se recorda de “Aladim e a lâmpada maravilhosa” ou de “Ali-Babá e os quarenta ladrões” nas versões de Malba Tahan? São histórias que povoam a nossa infância.
A escritora e ilustradora Maté fez uma viagem a Marrocos e lá encontrou uma história pouco divulgada que integra o corpus do livro “Mil e uma noites”. Quando regressou ao Brasil, resolveu escrever e ilustrar esta bonita história – “A árvore que canta, o pássaro que fala e o a fonte que rejuvenesce” (Ed. Brinque-Book, 2007).
O colorido das vestes dos marroquinos foi o ponto de partida para as ilustrações aquareladas em cores vibrantes. O cenário é a Pérsia. Lá vivia um rico sultão que estava à procura de uma noiva. Os anos iam passando e ele continuava solteiro, precisava arranjar uma noiva para casar. Resolveu vestir-se como um comerciante de tapetes, e saiu a percorrer o seu reino à procura de uma noiva ideal.
Certo dia, passando por uma casa humilde, ouviu o relato de três moças – a mais velha contava que sonhara que estava casada com o cozinheiro do palácio; a segunda tinha tido um sonho semelhante: sonhou que estava casada com o mordomo do sultão. Quanto à caçula, ela revelou que sonhara que ia casar com um vendedor de tapetes.
A resposta da mais nova despertou riso e deboche das outras irmãs e a reação foi dizer:
“- Como você é boba, contentar-se com um simples vendedor de tapetes! Assim nunca melhorará de vida!” (p. 8)
Mal tinham pronunciado estas palavras, surge à porta o falso vendedor de tapetes que, tendo ouvido as conversas das irmãs, resolveu entrar na casa das moças.
Depois de apresentar os tapetes e tomar água límpida da fonte trazida pela irmã mais nova, ele se desfez das vestimentas de vendedor e revelou que era o sultão e que iria realizar os desejos das irmãs – a mais velha casaria com o cozinheiro do palácio, a do meio com o mordomo e a mais nova seria sua esposa. Levou-as para o palácio e os casamentos foram realizados.
As duas irmãs ficaram com muita inveja da caçula e traçaram um plano de vingança, decidiram demonstrar que estavam muito felizes para não despertar nenhuma suspeita. A sultana engravidou, e quando foi ganhar o bebê as irmãs se ofereceram para ser parteiras. Nasceu um lindo menino que foi substituído por um filhote de macaquinho, cuidadosamente vestido com as roupas do enxoval do principezinho. O sultão quando soube ficou desapontado, mas resolveu aceitar o fato. A mesma cena se repetiu mais duas vezes – o segundo filho foi substituído por um filhote de cachorro e o terceiro, uma menina, por uma porquinha.
O leitor deve estar curioso para saber o destino dos filhos do sultão... eles foram colocados dentro de um cesto e jogados pelas irmãs malvadas na correnteza do rio que passava nos jardins do palácio. Um velho jardineiro recolheu-os e criou-os como se fossem seus filhos.
E o que aconteceu com a sultana?
Depois de três grandes decepções, o sultão resolveu castigá-la trancando-a em uma torre muito alta. As irmãs continuaram morando no palácio e o sultão não quis mais saber de casamento.
Os anos se passaram... Os meninos e a menina se tornaram adolescentes muito bonitos e começa um novo ciclo de aventuras. O resto da história envolve uma árvore que canta, um pássaro que fala a verdade, uma água dourada que tem o poder de rejuvenescer. Para saber o final da história, só lendo o livro escrito e ilustrado com muito carinho por Maté.
Vamos conhecer um pouco sobre esta escritora/ilustradora que tem um nome que parece um apelido.
Maté, na realidade é Marie Thérèse Kowalczyk, nascida na França, neta de poloneses. Veio adulta para o Brasil, gostou e ficou. Vai completar 30 anos que mora no Brasil, já podemos considerá-la brasileiríssima. É professora de Artes nas Faculdades Integradas Teresa D´Ávila na cidade de Lorena, interior de São Paulo.
Além desse livro, Maté já escreveu e ilustrou vários outros com temáticas africanas e indígenas. Maté está presente na orelha de “Livros à espera do leitor” com uma mensagem que nos enviou através do blog – nastrilhasdaliteratura. blogspot.

sábado, 23 de outubro de 2010

As cores do mundo de Lúcia


(Neide Medeiros Santos – Crítica literária – FNLIJ/PB)

Saiba que os poetas como os cegos
podem ver na escuridão.
(Edu Lobo/Chico Buarque de Holanda. Choro Bandido)

A temática dos excluídos na literatura infantil vem crescendo nos últimos anos. No Brasil, encontramos muitos livros de literatura infantil que tratam de aspectos ligados àqueles que vivem isolados da sociedade por algum tipo de deficiência ou discriminação. Nos livros para o público infantojuvenil, encontramos assuntos que transitam da marginalidade à intolerância racial, Os livros “Marginal à esquerda”, de Ângela Lago, “Carvoeirinhos” de Roger Mello, “Sapato Alto” de Lygia Bojunga Nunes abordam temas modernos que antes não apareciam na literatura infantil brasileira.
Daniel Munduruku, com muita propriedade, procura redimir a figura do índio; Rogério Andrade Barbosa valoriza a cultura africana com histórias que remontam aos países africanos. Luciana Savaget, com uma série de livros sobre os árabes, traz uma nova visão a respeito de palestinos e árabes.
Da Editora Paulus, recebemos, recentemente, (outubro de 2010), um bonito livro “As cores do mundo de Lúcia”, de Jorge Fernando dos Santos, com ilustrações de Denise Nascimento. Com sutileza, autor e ilustradora retratam o problema da cegueira.
Jorge Fernando dos Santos é mineiro, escritor de livros infantis e autor de peças teatrais. Denise Nascimento é, também, mineira, já ilustrou vários livros infantojuvenis e participou da Feira do Livro de Bolonha (Itália) e da Bienal de Ilustrações, na Eslováquia.
Na história de Lúcia, Jorge Fernando conta e Denise ilustra. O leitor percorre caminhos com a pequena personagem e vai descobrindo pouco a pouco como a menina celebra a vida e se encanta com as coisas simples que estão ao seu redor.
As associações dos sentidos com as cores é a tônica constante do livro. Cada cor tem um simbolismo distinto e a menina aprende a conviver com o mundo da escuridão através dos aromas, do tato, do som.
O branco lhe lembrava o algodão e o sabor “variava da acidez do sal de cozinha ao aroma adocicado das flores da jabuticabeira do jardim de sua casa”. Na época da floração, vinham abelhas com seus zumbidos e surge outra associação – “o som do branco era um zumbido suave e constante”.
E o verde? Está presente nas folhas da roseira, na folha cheirosa da hortelã, no vestido de aniversário presenteado pela avó, por isso o som do verde se assemelha à melodia “Parabéns pra você”.
A laranja é a cor do amanhecer, do canto do galo é a “cor do céu depois que amadurece”. À tardinha, um pouco antes do pôr do sol, o céu fica todo alaranjado.
O azul é a cor do mar e tem gosto de bala de anis. E o mar reflete tantas cores! Às vezes é de um azul profundo, torna-se prateado nas noites de lua cheia, dourado quando o sol está muito forte. As espumas colorem o mar de branco e aí tem “um forte gosto de sal.”
E o vermelho? Esta cor tem sabores variados. Gosto de batom, de pimenta e de frutas deliciosas, como a cereja e o morango. É a cor do sangue que pulsa nas nossas veias.
O amarelo tem o cheiro de banana madura, o gosto lembra o doce de pêssego em calda. Será que Lúcia já ouviu alguém dizer que esta cor era a preferida do pintor Van Gogh? A história não fala sobre isto, mas é bom acrescentar.
Por fim, vem o negro. Esta era a única cor que a menina podia ver. Mas ao lado do negro, vem uma feliz descoberta – ao receber do jardineiro o presente de uma jabuticaba bem madurinha, vem a delícia de saber que esta cor resulta da mistura de todas as cores.
Não poderia concluir este passeio com Lúcia pelo mundo das cores, sem fazer o registro das ilustrações suaves e sugestivas de Denise Nascimento.
Um fato chama a atenção do leitor. Lúcia, a mãe, a avó e os demais personagens da história aparecem sempre com os olhos fechados, só o jardineiro, encarregado de cuidar das flores do jardim, está com os olhos bem abertos.
Quem cuida de flores deve estar com os olhos abertos para não perder os momentos do desabrochar das pétalas. Quem não pode vê-las, deve ter sensibilidade para senti-las através do tato e dos aromas.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O vendedor de jornais revisitado-dav pilkey


O vendedor de jornais revisitado
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

São tantas as palavras
- como as pessoas -.
mas descobri-las poéticas é um exercício
secreto e refeito dia a dia.
(Arriete Vilela. Poema 37. In: Vadios Afetos)


Dav Pilkey é natural de Cleveland (EUA) e mora, atualmente, em Washington. É autor, entre outros livros, da série “As aventuras do Capitão Cueca”, “Ricky Ricota e Super–Robô”, traduzidos e publicados pela Cosac Naify.
Em 2010, a Cosac Naify publicou mais um livro de Dav Pilkey – “O menino entregador de jornais” (The Paperboy) que recebeu menção honrosa na Medalha Caldecott. No Brasil, o livro foi traduzido por Otávio Frias Filho, autor de livros infantis e diretor de redação do jornal “Folha de São Paulo” desde 1984.
As ilustrações deste último livro são de Dav Pilkey e chamamos a atenção do leitor para as páginas 24 e 25, elas foram inspiradas no quadro de Van Gogh – “Noite estrelada”. Acrescentamos que a ilustração da última página - um menino voando com um cachorro nos braços nos faz lembrar os quadros de Marc Chagall. Isso demonstra o estreito vínculo do escritor com a pintura.
Em nota inserida no livro, ficamos sabendo que a história do menino entregador de jornais é baseada na vida do próprio Pilkey, quando tinha treze anos.
O menino não é identificado pelo nome, é apenas um entregador de jornais. De manhã bem cedo, quando a cidade está escura e as pessoas ainda dormem, o pequeno se levanta bem sutil para não acordar o pai, a mãe e a irmã, chama seu cachorro, pega a bicicleta, arruma os jornais em uma sacola e faz a entrega dos jornais aos assinantes. Cumprida a tarefa, volta para casa e vai dormir.
A história é bem simples. Pilkey utiliza frases curtas, ritmadas. As palavras adquirem um tom poético, como neste exemplo:
“O mundo todo dorme,
menos o menino
e seu cachorro.
E é nessa hora
que eles são mais felizes. (p.24)

A página com este texto traz a ilustração que remete à famosa pintura de Van Gogh – “Noite estrelada” (1889).
A leitura do livro de Pilkey nos levou a uma crônica escrita por Graciliano Ramos em 1915 – “O vendedor de jornais”, publicada no jornal “Paraíba do Sul”, Rio de Janeiro, 20 de maio de 1915.
Nessa crônica, Graciliano descreve o dia a dia de um menino que vende jornais e encontramos afinidades com o texto de Pilkey. A mesma concisão e poeticidade do escritor americano se apresentam no texto graciliânico. Para descrever o menino jornaleiro, o escritor alagoano se esquece da prosa e “penetra surdamente” no reino da poesia. O fragmento que se segue poderia ter sido escrito por Carlos Drummond de Andrade ou Bandeira:

“O vendedor de jornais é o tipo mais despreocupado e alegre do mundo.
Tem uma alma de pássaro.
(...)
Dir-se-ia que tem asas.”
(Linhas Tortas. 2005: p.42)

Os tempos mudaram, hoje os jornais são distribuídos nas bancas de revistas ou entregues por adultos que se utilizam de motos. Ainda é possível encontrar alguns vendedores de jornais, mas em número reduzido. A figura do menino “trêfego, ativo, tagarela como uma pega, travesso como um tico-tico” que cantava o dia inteiro, anunciando grandes acontecimentos está desaparecendo. Felizmente existem os escritores, os poetas, os jornalistas, pintores e escultores que não deixam que essas figuras populares fiquem esquecidas.

sábado, 2 de outubro de 2010

José Jorge Letria e o poder encantatório da palavra.




José Jorge Letria e o poder encantatório da palavra.
( Neide Medeiros Santos – Crítica literária da FNLIJ/PB)

Cada palavra que aprendes
tem o gosto da aventura
e a magia secreta
que há no ato da leitura.
(José Jorge Letria. Versos para os Pais lerem aos Filhos em Noites de Luar)

José Jorge Letria, escritor português, é autor de vasta e diversificada obra. Na literatura portuguesa, tem lugar de destaque como dramaturgo, romancista, poeta, jornalista. Com o ilustrador André Letria, seu filho, publicou, pela Editora Peirópolis (2010), dois bonitos livros de poesia para crianças – “Avô, conta outra vez” e “Versos para os Pais lerem aos Filhos em Noites de Luar”.
O título do livro “Avô, conta outra vez” leva o leitor a pensar que se trata de um texto em prosa. Ledo engano, aí reside pura poesia, tudo perpassado por um lirismo encantatório. O avô se utiliza de versos para explicar ao neto que tem um saco cheio de histórias e no momento oportuno irá contá-las.

“Tenho em casa um saco cheio
de histórias para te contar
e só ando a fazer tempo
para as poderes escutar.

São histórias de outros tempos
que a minha avó me contou
com fadas e lobisomens
que a imaginação guardou.”

O avô e o neto têm um encontro marcado “na esquina de um livro / ou num quadro bem pintado”. O refrão “Ó avô, conta outra vez” aparece de forma reiterada, no decorrer do poema, sempre no último verso da quadrinha.
Não poderia deixar de fazer referência às ilustrações de André Letria. Desenhos e mais desenhos de livros se espalham pelas páginas, coroando os momentos mágicos de enlevo que envolve o contar histórias para o neto. Só quem já vivenciou essa experiência sabe a delícia que envolve esse terno momento.
Em nota da editora, na contracapa, vem esta observação que merece a transcrição: “Um livro para avós, pais e netos se lembrarem sempre do valor e da ternura que é capaz de unir gerações”.
Carlos Drummond de Andrade, no poema “Poesia”, revela o duro ofício de escrever um verso quando diz: “ele está cá dentro/ inquieto/vivo/ e não quer sair.” E prossegue o poeta: “Mas a poesia deste momento/ inunda minha vida inteira”.
Não sabemos se José Jorge Letria teve dificuldades para escrever os poemas do livro “Versos para os Pais lerem aos Filhos em Noites de Luar”, se lutou com as palavras, mas se torna evidente que a poesia inunda todas as páginas do livro. Terá sido influência da noite de luar? Pouco importa a resposta, o importante é a beleza poética do texto.
Se no livro anterior, a preocupação residia nas histórias contadas ao pé do ouvido, aqui esta preocupação está afeita à palavra. O adulto procura ensinar a criança o valor da palavra. Estes versos comprovam o que afirmamos:

“Cada palavra que dizes,
mesmo que seja hesitante,
tem a beleza sonora
da cantilena distante
que te entra no ouvido
vinda de uma tal distância
que, ao procurá-la no mapa,
encontramos a infância.”

E o poeta, pesquisador do significado das palavras, debruça-se sobre o aprender de novas palavras, sobre o ato da leitura, sobre cada palavra escrita.
E onde se guardam os afetos?

“E aquilo que tu sentes
passa de avós para netos,
é o livro onde se guarda
o tesouro dos afetos.”

Letria foi mais ousado nas ilustrações deste último livro – elas extrapolam o texto verbal, permitindo, assim, uma nova leitura.
Ler esses dois livros inundou, também, a minha vida de poesia.