sábado, 28 de fevereiro de 2009

Dumont - uma família de artistas e bordadeiras








Artigo - Dumont - uma família de artistas e bordadeiras

"... livros bordados- linguagem antiga em roupagem nova."(Nilma Lacerda. A vida por muitos fios)

Neide Medeiros Santos, Neide Medeiros Santos Crítica literária da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil/ PB

Antônia Zulma Dumont, a mãe; Ângela, Marilu, Martha, Sávia, filhas; Demóstenes, desenhista, está formada a família de artistas e bordadeiras. Para conhecer um pouco da história dessa família mineira de Pirapora, vejamos o que nos diz Ângela.

A mãe começou bordando o enxoval dos filhos com linhas matizadas, desenhando joaninhas, miosótis e jasmins. No aguardo da chegada dos filhos, as tardes eram preenchidas com ponto atrás, rococó, ponto de areia. À noite, Dona Antônia ouvia novela pelo rádio e continuava no seu bordado e as filhas maiores se encantavam com a caixinha cheia de linhas coloridas.

O tempo foi passando... os filhos cresceram e aprenderam a bordar. Demóstenes, o único varão da prole, começou a fazer os desenhos e a mãe e as irmãs puxavam as linhas. O universo dos bordados e desenhos, antes restrito a joaninhas e flores, começou a ser enriquecido com pássaros, peixes, nuvens, jardins, castelos, cidades. Hoje, como bem diz Pascoal Soto, a família emenda sonho e realidade. Dos bordados da família Dumont, enriquecidos com os desenhos de Demóstenes, nasceram livros que encantam e tornam mais bonito o universo infantil.

Entre os livros ilustrados com bordados da família Dumont, destacamos: "Menino do rio doce", texto de Ziraldo (Ed. Companhia das Letrinhas, 1996), "Águas Emendadas", texto de Ângela Dumont (Ed. Moderna, 1998), "A moça tecelã", texto de Marina Colasanti (Ed. Global, 2004). A família tem aumentado a sua produção artística e há outros livros ilustrados por essas mãos divinas. Vamos falar um pouco sobre cada um dos livros citados.

Em "Menino do rio doce" o narrador/poeta identifica o menino com o rio - deitando o ouvido na margem, o menino ouvia seus segredos; olhando o horizonte ele via o rio sumir e nas horas de contemplação surgia a pergunta: "o que há além do rio? Será o rio infinito?".

Outra pergunta que sempre fazia: "de quem era o rio"? O rio era de muitas pessoas, mas ele tinha certeza de que o "rio mais belo era o rio de sua aldeia". E o rio tinha as suas histórias: Cobra-Grande, perigos escondidos nas pedras, serpentes que devoravam homens e crianças. O rio é o motivo condutor da história.

Um dia... o seu melhor amigo desapareceu nas águas do rio, o rio levou o companheiro das folganças e as águas ficaram mais tristes, o amigo ficou "dormindo o seu sono sem retorno", o azul já não era o mesmo, o azul alegre, festivo, foi substituído por um tom cinza, sem brilho, sem vida.

"Águas emendadas" é uma linda história de amor entre São Francisco e Santa Clara. Será que existiu esse amor? Se não existiu, foi inventado e muito bem inventado por essa família engenhosa e por poetas sensíveis.

Há passagens do livro que podem ser consideradas pura poesia, outras prosa poética.. As ilustrações feitas em matiz e ponto areia retratam paisagens, castelos, o sol, a lua e muitos e muitos pássaros.

O texto se inicia de forma tradicional: "Em Assis, entre longes azulados (...) vivia Francisco", mas logo depois a narrativa se perde e o texto se torna poesia, não há mais a preocupação com a narrativa, é sentir, é ver, e não pensar em nada, como bem apregoa o poeta Alberto Caeiro. Aí surge Clara "que por ali vivia" e "desde o dia em que ouviu Francisco, cismou sair de casa", e juntos subiam serras e desciam montes, colhiam flores, teciam fios e conversavam com os pássaros.

Neste livro, predominam as cores quentes - o amarelo, o vermelho. Há também uma profusão de tons alaranjados, ainda é possível encontrar uma mescla de tons carmins e róseos. Os matizes e os pontos de areia se entrelaçam nas vestes de Francisco e Clara.

Após a leitura do livro, lembramo-nos dos poemas de Cecília Meireles - "Pequeno Oratório de Santa Clara", poemas que representam três fases da vida de Santa Clara: infância, juventude e idade adulta, textos poéticos tão bonitos quanto às ilustrações e os bordados da família Dumont.

Na última página do livro, Ângela envia uma mensagem para os leitores: Que "Águas emendadas seja desenhado em muitas linguagens, até que cada um reborde sua história em redes de amor".

"A moça tecelã", texto de Marina Colasanti, com ilustrações dessa família de artistas, é um presente para o olhar e uma leitura deleitosa. Aqui o tecer encontra a mais alta expressão na prosa poética de Marina e nas mãos dessas hábeis bordadeiras.

Para ilustrar com bordados o texto de Marina Colasanti, a família Dumont recorreu aos tecidos de algodão colorido da Paraíba, teçumes de Pirenópolis e aos panos de Minas Gerais. Há um perfeito acasalamento entre o tecer palavras e o tecer fios.

A tecelã da palavra (Marina) encontra perfeitas parceiras no ato de tecer fios (Ângela, Antônia Zulma, Marilu, Martha e Sávia); escritora e ilustradoras caminham por um conto tradicional que mostra um trabalho feminino (ato de tecer) explorado pelo marido e senhor. As exigências do marido aumentam cada dia - às vezes ele queria uma casa tecida com as mais belas lãs de cor de tijolo, depois vinha o pedido - desejava agora morar em um palácio e a pobre moça tecia, tecia, sem descanso, já não havia mais tempo para ver a neve que caía lá fora, não tinha tempo para chamar o sol, era só trabalho, o tecer, antes prazeroso, tornou-se cansativo, extenuante.

Mas, um dia, a moça tecelã ficou extremamente cansada e resolveu desmanchar tudo, enquanto o marido dormia desteceu palácio, jardins, pátios e, sozinha, na sua pequena casa, a moça tecelã "sorriu para o jardim além da janela".

Em texto escrito para este livro, "A vida por muitos fios", a ensaísta e também escritora Nilma Lacerda diz: "... livros bordados - linguagem antiga em roupagem nova".
Com a técnica de livros bordados, a família Dumont está trazendo de volta um passado que parecia perdido, um passado que não pode morrer.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Resgate na Jordânia: o universo árabe de Luciana Savaget


Artigo - Resgate na Jordânia: o universo árabe de Luciana Savaget

Se os meus amigos me fugirem... de mim fugirão todos os tesouros. (Provérbio árabe, citado por Malba Tahan)

Neide Medeiros Santos, Crítica literária da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil/PB

O escritor brasileiro e professor de matemática, Júlio César de Mello e Souza, que adotou o pseudônimo de Malba Tahan, foi um incansável admirador da literatura árabe, escreveu mais de 20 livros sobre lendas e contos árabes.

Malba Tahan se encantou, mas ficaram seus livros e o apreço por esta cultura milenar. Suas histórias fabulosas e o mundo encantado dos califas, princesas, reis, gênios da lâmpada e dos tapetes mágicos encantaram crianças e jovens do Brasil nas décadas de 50 e 60 do século XX. Quem viveu a infância nesse período e não se recorda de "O livro de Aladim", reeditado pela Record em 2001? O rico universo das mil e uma noites está presente neste livro cheio de encantamento.

Luciana Savaget, escritora e jornalista, deu continuidade ao trabalho de Malba Tahan, na valorização do mundo árabe, mas os tempos são outros, estamos no século XXI e o texto de Luciana traz marcas da modernidade. Em um auto-retrato, inserido no livro "Operação Resgate na Jordânia: o segredo do deserto", ela assim se define:
"Nasci no Rio de Janeiro e vivo inventando histórias (...) Quando eu crio uma história, é para que ela se prolongue no gesto, no olhar, na voz e nos conduza à imensidão do imaginário. E foi a fantasia que me levou de verdade a conhecer a Jordânia, a Síria e a Palestina em 2005".

Operação resgate na Jordânia: o segredo do deserto (Ed. Nova Fronteira, 2007, 204p.) é o segundo livro da escritora que retrata o mundo árabe e conta a viagem aventurosa da diretora da Sociedade Internacional de Resgate à Fantasia (SIRF) no Oriente Médio. É um texto jornalístico, um diário de viagem, um relato real e uma ficção, tudo mesclado de muita fantasia. A personagem-narradora transita entre dois mundos - o ser e o parecer.

Na companhia dessa guia especial, vamos percorrer terras decantadas por Malba Tahan e conhecer um pouco mais da história dos povos do Oriente Médio através da leitura desse interessante livro.

O livro contém muitas informações sobre o Iraque, Síria e Jordânia. Cartas, e-mails, fotografias, mapas da região, desenhos e ilustrações de Graça Lima dão a verdadeira dimensão do entrecruzar da realidade com o mundo imaginário.

A personagem-narradora é diretora das Heranças Culturais da Sirf - e sai à procura da lâmpada mágica de Aladim, desaparecida e escondida pelo gênio da lâmpada. Graças a Alá as crianças ainda não tomaram conhecimento desse sumiço. Será que a diretora vai encontrá-la?

Durante a leitura, que é um verdadeiro passeio pela cultura árabe, ficamos conhecendo aspectos da rica culinária desses países, até a receita de um delicioso biscoito de tâmara é fornecido pela personagem Azin, uma amiga da diretora. Azin é detentora de muitos saberes e conhece os meandros da rota dos aventureiros e daqueles que procuram colocar pedras no caminho de quem quer o bem da humanidade.

Registramos também a presença de alguns vocábulos árabes e a sensação do caminhar pelo deserto: o vento assolador, o sol causticante, tudo é detalhado com a precisão de quem caminhou e sentiu realmente o que é o deserto.

Na aventurosa viagem pelo deserto, oferecem leite de camelo à diretora da Sirf e dão a seguinte explicação: "O leite de camelo é rico em vitamina C e saboroso". (p.191).
Uma tônica constante no livro é o cuidado com a preservação das bibliotecas, com os livros, o cultivo das histórias que devem ser transmitidas de uma geração para outra, a lição que podemos usufruir da leitura.

O livro termina em aberto, a lâmpada não foi encontrada. Resignada, mas não desanimada, a diretora da Sirf conclui:

"Um agente da Sirf tem que ter em mente que: Nunca é tarde para resgatar os sonhos. Eles salvam a esperança."

Aguardemos novas aventuras por terras árabes. Luciana, certamente, está preparando uma nova viagem. Para onde será?

Saiba mais

Luciana Savaget já ganhou vários prêmios, entre eles o de Personalidade Internacional da Criança, da União Brasileira de Escritores. É autora de mais de 25 livros, seis deles publicados no México, Colômbia, Cuba, Alemanha e Palestina. "Operação Resgate em Bagdá: a batalha do invisível" foi traduzido para o árabe. O Ministério de Educação da Palestina comprou 11 mil exemplares e distribuiu nas escolas e campos de refugiados da Faixa de Gaza. Luciana desenvolve um projeto com crianças carentes na favela da Maré, no Rio de Janeiro, e apresentou parte deste projeto no Congresso Internacional IBBY (Copenhague, setembro de 2008)

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Mzungu e os gemeos do tambor: historias quenianas


Artigo - Mzungu e os gêmeos do tambor: histórias quenianas
Neide Medeiros Santos, Crítica literária da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil/Paraíba

Meja Mwangi, escritor queniano, é autor de vários livros premiados e traduzidos para o alemão, russo, japonês e português. Atualmente é considerado um dos escritores mais importantes de Quênia.

Mzungu (SM: 2006) não é propriamente um livro autobiográfico, mas conta fatos vivenciados pelo autor e a luta dos quenianos pela independência de seu país.

Nos anos 50, do século XX, Quênia era um país em permanente conflito; de um lado, estavam os "mau-mau", grupo guerrilheiro formado principalmente pelas tribos massai e kikuyu e do outro lado os colonizadores ingleses. É nesse clima de conflito entre os donos da terra e os colonizadores que se desenvolve a história de dois meninos - Nigel (inglês) e Kariuku (queniano).

No meio desse clima hostil, Nigel e Kariuku, indiferentes às rebeliões e mortes que envolvem as pessoas grandes, desenvolvem uma amizade que está acima da cor da pele e dos preconceitos. Com Kariuku, Nigel conhece as riquezas e a diversidade da floresta africana, distingue os animais peçonhentos dos inofensivos, os encantos da caça e da pesca. Nigel, por sua vez, explica a Kariuku como são as cidades grandes, na Inglaterra. Entre os dois meninos não há choque de culturas, é um entrecruzar de informações, um enriquecimento de saberes.

Quênia é um país que seduz não apenas os ingleses e os próprios quenianos, mas pessoas de outras regiões e de outros países. Rogério Andrade Barbosa, escritor brasileiro, já morou na África como voluntário das Nações Unidas e se revelou um apaixonado pela cultura africana, escreveu mais de sessenta livros e a metade desses livros falam sobre o povo africano, seus contos, suas histórias, suas tradições.

Os gêmeos do tambor (DCL: 2006), de Rogério Andrade Barbosa, com ilustrações de Ciça Fittipaldi, é um reconto do povo massai, habitantes da região que se situa entre Quênia e Tanzânia. Esta história, contada pelo povo massai, guarda afinidades com o conto bíblico que narra a história de Moisés - dois meninos gêmeos são lançados no rio e salvos por um pescador que resolve criá-los como se fossem seus próprios filhos. O pescador deu-lhes os nomes de Kume e Kidongoi e eles cresceram sem saber quem eram seus verdadeiros pais.

Na aldeia onde moravam, os meninos eram chamados de os "gêmeos do tambor", eles estranhavam a denominação, mas ninguém explicava o porquê do nome. Eles sabiam tudo sobre gado, os fenômenos da natureza, as estações do ano, o deslizar das águas nos rios, mas faltava conhecer seu próprio passado.

"O tempo é como o vento, passa depressa" e os meninos transformaram-se em jovens guerreiros, fortes como um tronco de baobá. Na passagem da adolescência para a idade adulta, os jovens devem se submeter a um ritual de iniciação, provas que todo massai deve passar para ser considerado um "maran" (homem), isto é, tornar-se um verdadeiro guerreiro e Kume e Kidongoi passaram brilhantemente por essas provas.

Um dia, o velho pescador sentiu que ia morrer e resolveu contar a verdade aos jovens que ele adotara como se fossem seus próprios filhos. Sabedores da verdade, os irmãos, agora "marans", resolveram sair para conhecer a terra onde nasceram os seus verdadeiros pais. Como eles chegaram ao conhecimento dos fatos, somente a leitura do livro traz a chave do mistério.

A riqueza desse conto vem aliada à belíssima ilustração de Ciça Fittipaldi, ilustradora que sabe manejar com tintas coloridas e matizar contas, cores, plumas, tudo de forma harmônica e agradável ao olhar.

Nas páginas 27 e 28, o leitor se extasia com a beleza de um baobá. Na página 27, a árvore está toda florida, flores branquinhas, com pistilos amarelos nos dão a sensação de uma eterna primavera. Na página seguinte, frutos marrons indicam a chegada do outono, do amadurecimento. Esta imagem pictórica e poética nos leva a refletir sobre o tempo, sobre o passar dos dias, das estações.

As flores representam o tempo da juventude, dos rituais de iniciação; os frutos - , o amadurecer, o tempo de partir, o tempo da procura, do encontro.

Os baobás estão presentes em outras páginas do livro, alguns aparecem pequenininhos, longe, muito longe, emoldurando o fundo das páginas, outros estão cheios de folhas verdes, mas o encanto das flores e dos frutos não se repete nas outras páginas.

No Eclesiastes, considerado um dos livros mais poéticos da Bíblia, há uma passagem que fala sobre o tempo e vale a pena repetir:

"Todas as coisas têm seu tempo e para cada ocupação chega a sua hora debaixo do céu. Hora para nascer e hora para morrer; hora para plantar e hora para arrancar o que se plantou...".

A imagem pictórica do baobá, carregado de flores e depois de frutos, pode ser associada a esta bela passagem bíblica. Chegou o tempo de Kume e Kidongoi colherem os frutos, o tempo de encontrar seus verdadeiros pais.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Raízes míticas da literatura indígena para crianças







Raízes míticas da literatura indígena para crianças

Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo. (Dom Hélder Câmara. *7/02/1909 - Centenário de nascimento).

Neide Medeiros Santos, Crítica literária da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil/Paraíba

O mitólogo americano Joseph Campbell, na entrevista concedida a Moyers, que se encontra no livro "O Poder do Mito", afirma que foi lendo os livros sobre os índios americanos, quando criança, que descobriu os mitos, pois nessas histórias estavam presentes "criação, morte e ressurreição". Vamos seguir a orientação de Campbell e viajar pelos caminhos do mito na literatura infantil indígena produzida para crianças no Brasil.

Quando falamos em literatura indígena para crianças no Brasil, século XXI, desponta o nome de Daniel Munduruku. O primeiro livro deste autor - "Histórias de índio" - foi editado pela Companhia das Letrinhas, em 1996. Em 2001, Daniel publicou "Meu vô Apolinário" (Studio Nobel: 2001) e explica como surgiu este livro. Ele tem dois amigos que costumam dizer que os índios têm uma coisa que o brasileiro não tem - "ancestralidade" e foi pesquisando sobre essa palavra que ele descobriu um significado muito bonito - ancestralidade que dizer raízes.

Meditando sobre esse significado, Daniel Munduruku concluiu que ser índio é ter raízes e foi buscar, na memória dos seus antepassados, no caso deste livro, o avô, a história de seu povo e, a partir dessa consciência, como ele bem afirma, surgiu "a poesia da sabedoria dos nossos anciãos e como eles têm destaque dentro de nossa sociedade e de nossos corações" (2001:38).

Os índios, os primeiros habitantes do Brasil, têm uma rica tradição mítica, o que estava faltando era um escritor que transformasse em livros essas histórias contadas pelos mais velhos às gerações mais novas, aos curumins, às crianças brasileiras do século XXI.

Alguém poderia dizer: e os livros indianistas de José de Alencar, os poemas indianistas de Gonçalves Dias e os textos de outros escritores que procuraram retratar os índios brasileiros, onde colocaríamos? Existiu, realmente, no século XIX, na literatura brasileira, uma preocupação em apresentar, de forma idealizada, os nossos índios, mas só no século XXI, nos livros de Daniel Munduruku e nos livros escritos por outros índios e descendentes indígenas eles deixaram de ser idealizados, passaram a ter voz. O índio é autor e ator da sua própria história.

Há um livro de Daniel Munduruku posterior a "Meu vô Apolinário" - Os Filhos do Sangue do Céu e outras histórias indígenas de origem (2005: Landy Editora) que apresenta algumas histórias indígenas relacionadas com o mito da criação, embora Daniel afirme que essas histórias não são lendas, sequer são mitos, são histórias que devem ser lidas com o coração, e é com o coração que vamos fazer a leitura dessas histórias e passar para vocês um pouco desse sentimento de ternura que elas despertam.

Para escrever este livro, Daniel recolheu histórias de quatro povos indígenas: Tariano, Apinajé, Tembé, Caiapó. Na apresentação, o autor fala que os textos não são lendas nem mitos, mas no subtítulo de cada história aparece a palavra mito - tem razão, portanto, o poeta Fernando Pessoa quando diz: "o mito é o nada que é tudo".

Vamos percorrer as trilhas desses contos que se ligam todos à origem da criação. O primeiro texto traz o mesmo título do livro - Os Filhos do Sangue do Céu - um mito do povo Tariano.
Quem são os tarianos?

Os tarianos estão presentes no Amazonas, mais precisamente no Alto Rio Negro, mas também na Colômbia. Pertencem ao tronco lingüístico Aruak e somam uma população de duas mil pessoas (2005:14).

Este conto fala sobre como nasceram as pessoas tarianas, elas teriam surgido de um grande trovão que explodiu, partiu-se em dois, transformou-se em carne, jorrou sangue e da divisão dos pedaços de carne apareceram os tarianos. Para conquistar seu espaço, eles lutaram muito, enfrentaram outros povos até se estabelecerem na região escolhida.

O segundo conto fala sobre o surgimento do milho entre os índios e aparece com este título - Como surgiu o milho - um mito do povo Apinajé.

Mas antes vejamos quem são os apinajés.

Os apinajés estão presentes no Estado de Tocantins. São falantes do Jê e somam uma população de mais aproximadamente mil pessoas. (2005:28).

O conto apresenta a história da origem do milho. Um homem muito moço perdeu a mulher, sua tristeza era tão grande que deixou os cabelos crescerem e decidiu dormir nas moitas ao lado da casa. Uma noite, olhando o céu, ele viu uma estrelinha muito bonita que lhe chamou a atenção, durante muito tempo ficou olhando para a estrela até que adormeceu. A estrela aparece depois em forma de uma rã e se transforma em uma linda moça. A princípio, a jovem vivia escondida dentro de um pote, depois de algum tempo ele apresenta a moça aos familiares e resolve casar com ela. A moça/estrela mostrou aos índios a árvore que dava milho, todos passaram a gostar do novo alimento e até hoje os Apinajés gostam muito de comer milho.

O penúltimo conto está também ligado à origem de outro alimento - a mandioca. Como surgiu a mandioca e outra aventura dos filhos das onças. Um mito do povo Tembé.

Os Tembé estão presentes nos Estados do Pará e Maranhão. São falantes do Tupi, da familia linguística tupi-guarani. Sua população é de aproximadamente 1.500 pessoas. (2005: 40)

Neste conto aparece a figura de um pajé poderoso, Maíra, que é detentor do segredo da mandioca, ele sabe como plantar, como colher. Onças, com atitudes humanas, também estão presentes, elas falam e agem como pessoas. É um conto cheio de aventuras, de viagens, de abandono e de reencontro.

O último conto traz o título Como apareceu o fogo, um mito do povo Caiapó.

Os Kayapó (Caiapós, Kaiapós, Kubenkokré) se autodenominam Mebemokré, que significa "gente do fundo do rio". Esse povo - que vive no sul do Pará - acredita que seus primeiros pais, seus antepassados, saíram de dentro do rio para povoar a terra. Mas acreditam também que são filhos das estrelas segundo o mito de origem.

São falantes de uma língua pertencente à família linguística jê e têm uma população de aproximadamente cinco mil pessoas. (2005:50)

O surgimento do fogo está muito ligado aos mitos da criação e, neste conto, um animal, uma onça macho, é a portadora do fogo, é ela quem ensina a um menino do povo kaiapó o lugar onde se encontra o fogo e a partir do conhecimento do fogo os kaiapós passaram a cozinhar seus alimentos.

Os Filhos do Sangue do Céu e outras histórias indígenas de origem reúne quatro contos, quatro histórias, quatro lendas, quatro mitos.

SAIBA MAIS

Daniel Munduruku é diretor-presidente do INBRAPI - Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual e tem procurado difundir, divulgar a boa literatura produzida por índios e descendentes indígenas. Que venham mais e mais livros, histórias e mais histórias e que as gerações futuras sintam um dia o orgulho de ser descendentes dos índios.