quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Vozes do sertão dentro da gente

Vozes do sertão dentro da gente
(Neide Medeiros Santos – Leitora votante da FNLIJ/PB)


            As ondas do vento
            Seridó, Seridó embala
            do jardim à campina
            Seridó, Seridó ensina
            que o mar tem janelas
            tem janelas, Paraíba, tem
            com rendas que o mar
            contém
            (...)
            Viva o Nordeste dentro da gente!
            (Peter O´Sagae. Paraíba. “Resposta artística ao preconceito contra nordestinos”, palavras de Eloí Bocheco)).


“Vozes do sertão” (Ed. Cortez), livro organizado por Lenice Gomes e ilustrado por Rui de Oliveira, surge em momento propício – momento em que se procura valorizar o nordestino, o homem do sertão.  São múltiplas vozes que contam e cantam a nossa região – contadores de histórias, pesquisadores e violeiros estão presentes neste bonito livro que contém textos de nove escritores do Nordeste.
Lenice Gomes é natural de Japi, agreste pernambucano, e mora atualmente em Olinda. Escritora e contadora de histórias, a autora sempre se volta para as raízes nordestinas, valorizando as brincadeiras de roda, adivinhações, o carnaval recifense, os contos de origem popular. Ao organizar essa coletânea sua preocupação foi dar relevo ao que temos de mais autêntico – nossas histórias, nossos costumes, nossa gente.
Do Ceará a Minas Gerais, desfilam diante do leitor contos e cordéis que refletem a alma do nosso povo – suas crenças, seus valores, seu amor à terra e, acima de tudo, “a força do sertanejo que enfrenta a vida e a morte e insiste em contemplar a beleza e o encantamento do mundo”.
A primeira história nos vem do Ceará,  de Arievaldo Viana – poeta, ilustrador e publicitário, autor de inúmeros cordéis. Em nota que antecede seu texto – “O homem que queria enganar a morte”, o autor afirma que foi alfabetizado com a avó que usou muito literatura de cordel para ensinar ao neto a ler e a escrever.
Arevaldo Viana se utiliza de um tema sempre recorrente na literatura de cordel – a fuga da morte.  Através de redondilha maior, o poeta conta as artimanhas de um ricaço para escapar da morte. Ele procura enganá-la trocando o número de sua casa pelo número da casa do vizinho – um homem muito pobre que era explorado pelo ricaço. Será que deu certo o truque do homem rico?
Cláudia Lins, representante de Alagoas, traz uma lenda especial do folclore do Rio São Francisco. “Comadre Mocinha e o fogo correndo”.  Essa lenda corre pelas ribeiras do rio São Francisco – uma senhora viúva, conhecida por Comadre  Mocinha, contava que certa noite recebeu a visita de um fogo vindo do céu. O fogo veio bem rápido, pousou na sua mão, cochichou alguma coisa no seu ouvido e desapareceu. O que teria dito o fogo à Comadre  Mocinha? Mistérios. Ela nunca revelou.
Cida Pedrosa é de Pernambuco e seu texto – “A flor de mandacaru” fala sobre a morte do vaqueiro Antonio Biu, conhecido e respeitado por todas da redondeza. A sua morte não foi chorosa, os amigos estavam presentes e conformados com o desfecho.  Antonio Biu partiu ao anoitecer, na hora em que o vento soprava forte e o cheiro da flor do mandacaru tomava conta do terreiro.  
Da Paraíba, o texto de Estelita Medeiros é de teor memorialista. “A Dama Fantasma da Lagoa” reúne memória e ficção. Estelita resgatou casos e fatos ocorridos em João Pessoa e o personagem que conta a história é seu tio-avô. O ponto de apoio da história repousa no acidente que houve na Lagoa do Parque Solon de Lucena em 1975.  
“A lenda do bode berrador” é um texto de José Walter Pires, da Bahia. Em forma de cordel, o autor conta a história de um homem que se enforcou em um galho de baraúna e se encantou em um bode, um “bicho encantado, mal-assombrado, peçonhento” que inspirava medo a todos que passavam pela caatinga.
Salizete Freire Soares, representante do Rio Grande do Norte, com “Reconto que passa, passa o que conto já contei”, apresenta uma história cumulativa e utiliza parlendas e contos populares para recriar a cantiga infantil de Dona Baratinha e seu Ratão.
Arlene Holanda, natural de Limoeiro do Norte (Ceará), recolheu uma história ouvida na infância e contada por seu pai - “O tesouro enterrado no terreiro”. O texto é apresentado em cordel (sextilhas). Como o próprio nome indica, trata de uma história de botija.  Uma voz cavernosa, na calada da noite, sussurra no ouvido de José Quirino o local onde ele poderia encontrar um tesouro enterrado. Para localizar a botija, José Quirino enfrenta inúmeros obstáculos.
De Minas Gerais, Gislayne Matos, contadora de histórias e pesquisadora dos contos tradicionais, reconta a devoção de uma moça a Santo Antônio com o objetivo de conseguir um marido. Desesperada, um dia a moça resolve jogar a imagem do santo pela janela.  Ao cair na calçada, a imagem fica toda quebrada.  Nesse justo momento, ia passando um rapaz que tudo presenciou e o resultado... a moça conseguiu o marido desejado. Esse conto é bem antigo, vem de terras do além-mar.   
O último texto é da organizadora da coletânea, Lenice Gomes, escritora e pesquisadora da tradição oral de Pernambuco.  “Chora-lua, chora-lua” tem como protagonista uma moça contadora de histórias e cantora. Embora tivesse uma bela voz e soubesse contar bonitas histórias, a moça era feia, desajeitada e não conseguia atrair pretendentes para o casamento. Para esconder sua feiura, ela andava sempre com um véu no rosto. Um dia apareceu um rapaz que se apaixonou pela voz da moça. Ao retirar o véu foi uma decepção, o rapaz fugiu e a moça ficou sozinha cantando sempre uma canção dolente como o canto do pássaro noturno, popularmente chamado de “chora-lua, chora-lua”.
Todas essas histórias, contos e textos de cordel foram ilustrados por Rui de Oliveira que, com seu traço forte e cores vibrantes, representou muito bem as cores do sertão nordestino.
Nota: O poeta e crítico de literatura infantil, Peter O´Sagae, divulgou na internet
uma série de poemas dedicados aos estados do Nordeste do Brasil, um modo de responder àqueles que se preocupam em discriminar essa região e seu povo.   Cada poema traz o título de um estado nordestino e se encerra com o refrão: “Viva o Nordeste dentro da gente!” Transcrevemos, como epigrafe, a primeira estrofe do poema dedicado à Paraíba e a esta colunista. Peter foi nosso aluno em um curso que ministramos na Bienal do Livro em São Paulo há alguns anos. Ficou a amizade, o carinho, o afeto. Muito obrigada, Peter.