terça-feira, 15 de agosto de 2017

Sobre leitura e livros


Fundação Casa de José Américo
Dia do Escritor – 25 de julho
                               Sobre leitura e livros
            (Neide Medeiros Santos – FNLIJ/PB)

            Pedro tem
palavras de ouro e um pião

com palavras, Pedro
inventa umas histórias
que o tapete do vento
desenrola no alto
de oito colinas
(...)
com o pião, Pedro
faz girar o mundo na palma da mão
.
(Peter O ´Sagae. Pedro faz com o que Pedro tem. Do livro “Uma noite para João e outros poemas”).
           
Século XIX (Anos 1830)
             No Brasil colonial, poucas eram as mulheres alfabetizadas. A escritora potiguar Dionísia Gonçalves Pinto, que ficou conhecida no mundo das letras como Nísia Floresta Brasileira Augusta, foi a primeira mulher no Brasil a publicar um livro - “Direito das mulheres e injustiça dos homens” (1832).  É uma tradução livre e repleta de comentários de um livro feminista inglês “A vindication of the rights of woman” (1792) da escritora inglesa Mary Wollstone-craft.

 Mas Nísia Floresta também escreveu poesia. O poema “A lágrima de um caeté” trata dos problemas dos índios. Não é uma visão ufanista como a de José de Alencar, apresenta um índio derrotado pelo invasor branco. Era uma visão bem realista. Nísia Floresta escreveu também artigos para jornais e revistas literárias. Era uma ativista cultural em uma época de domínio dos homens na vida política, na imprensa, na literatura.  

 O pseudônimo que adotou e com o qual ficou conhecida foi inspirado nos seguintes fatores: sua paixão pelo campo (Floresta),orgulho de sua nacionalidade (Brasileira) e o amor pelo marido (Augusto) . Essas informações aparecem no texto “A primeira mulher a escrever um livro no Brasil”, de Marcel Verrumo (2017: 120-124).

Nísia Floresta foi escritora, professora e educadora. Fundou, no Rio de Janeiro, o Colégio Augusto, dedicado à educação feminina. O nome do colégio era uma homenagem ao seu segundo marido, Manuel Augusto de Faria Rocha.   Esse colégio tinha um diferencial dos outros colégios destinados às moças – enfatizava o ensino de línguas estrangeiras,  história, aritmética e português, igual ao ensino direcionado aos meninos.  Antes desse colégio inovador, as moças aprendiam piano, francês, a bordar e a costurar. As escolas para meninas eram verdadeiras escolas domésticas. Nísia Floresta revolucionou o ensino feminino no Brasil no século XIX (2ª metade do século XIX) com essa escola no Rio de Janeiro.  É considerada a primeira feminista brasileira.

 Século XX (Anos 1900/1910)
            O escritor Graciliano Ramos ao relatar fatos da sua infância passada em Buíque, Pernambuco, nos primeiros anos do século XX, faz uma leitura da cidade que é uma leitura do mundo. Para o pequeno Graciliano, que tinha apenas seis anos e não sabia ler, Buíque tinha a aparência de um corpo aleijado. A igreja era a cabeça, o largo da feira era o tronco; a Rua da Pedra e a Rua da Palha eram as pernas, uma quase estirada e a outra curva; um dos braços era representado pela Rua da Cruz, com o cemitério velho.  Assim era a leitura que o menino fazia da vila de Buíque. 

Alguns anos mais tarde, com dez anos, morando em Viçosa, estado de Alagoas, e já sabendo ler, descobriu a biblioteca do tabelião Jerônimo Barreto. Todos os dias passava em frente à casa do tabelião e via uma estante cheia de livros. Namorava aqueles livros, lançava olhos compridos para a estante, mas não tinha coragem de entrar na casa e pedir emprestado algum daqueles exemplares que se mostravam perfilados na estante.  Certo dia criou coragem, dirigiu-se ao tabelião e manifestou o desejo de ler um daqueles livros. O tabelião mandou-o entrar e ofereceu “O Guarani”, de José de Alencar. Depois muitos outros foram emprestados, lidos e devolvidos.  O atrevimento do menino fez com que se tornasse um leitor contumaz. Nas palavras de Graciliano, a leitura tornou-se um vício. Depois que “desasnou” não parou mais de ler.

   No início do século XX, com a criação das escolas normais, a mulher deixou um pouco os afazeres domésticos e passou a exercer a função de professora, mas escrever continuou sendo coisa de homem, poucas eram as mulheres que se aventuravam a escrever para revistas e jornais.  Na Paraíba, nos anos de 1920, destaca-se a figura da professora Eudésia Vieira. Formada pela Escola Normal da Paraíba em 1911, Eudésia dedicou-se, além do ensino primário a lecionar História do Brasil, publicava livros e  escrevia  para revistas e jornais da Paraíba. Foi a primeira mulher a pertencer ao Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (1922).  Publicou livros de História do Brasil e da Paraíba, de poesia e de memórias.  Alguns anos mais tarde, em 1930, resolveu cursar medicina em Recife e teve que se ausentar do marido e dos filhos. Sofreu pressões da família, mas não desistiu.  Obstinada como era, frequentou o curso de medicina e formou-se pela Faculdade de Medicina do Recife em 1934. Foi a primeira mulher da Paraíba a ter o título de doutora em medicina.

Anos 1920
 Dentro desse universo de escritores e educadores preocupados com o ato de ler, desponta Monteiro Lobato. Ele é considerado o “divisor de águas” da literatura infantil no Brasil. Sabendo que o gosto pela leitura começa na primeira infância. Lobato investiu na criança e escreveu muitos livros destinados a esse público, alguns com caráter didático, como “Aritmética da Emília”. “Geografia de Dona Benta”, outros ficcionais, apelando para a fantasia e a imaginação. Nesse caso, citam-se “As reinações de Narizinho”, “Caçadas de Pedrinho”, “Memórias da Emília”. Lobato era tão preocupado com os livros de leitura para crianças adotados nas escolas brasileiras que, em carta ao amigo Godofredo Rangel, externou esse pensamento: “gostaria de escrever livros onde as crianças pudessem morar neles”. Esse sonho foi concretizado. O sítio do Picapau Amarelo é um lugar utópico, idealizado, de muita liberdade. Engana-se quem pensa que não havia estudo no sítio do Picapau. Dona Benta lia histórias para as crianças, contava histórias verdadeiras e imaginárias. Tia Nastácia sabia de cor muitos contos populares e transmitia seu saber para as crianças do sítio, assim elas iam recebendo informações ligadas à cultura erudita e à popular por meio das duas contadoras de histórias.   

A perseguição à leitura e ao livro é constante nos regimes autoritários. Lobato foi vítima dessa perseguição. Nos anos 1940, seus livros foram queimados em praça pública na cidade de Salvador sob a acusação de que eram heréticos, isto é, contrários à doutrina da igreja católica.  Em seus livros, Lobato não fala em religião, os meninos vivem livres de compromissos com a igreja.

Anos 1930
Outros escritores também passaram constrangimentos por suas atitudes independentes. Cecília Meireles, poeta, professora, jornalista e educadora sofreu com a incompreensão de um governo totalitário.  Nos últimos anos de 1930, foi convidada por Anísio Teixeira, Diretor do Departamento Educação, para dirigir a primeira biblioteca infantil no Brasil. Essa biblioteca funcionou no “Pavilhão Mourisco”, no Rio de Janeiro. Era uma biblioteca modelo e Cecília Meireles sentia-se gratificada pelo convite e por exercer tão importante cargo. Nesse período, o Brasil estava sob o regime do Estado Novo, tempo de repressões políticas. Tudo que não fosse fiel ao governo era censurado.

 A biblioteca infantil, dirigida por Cecília Meireles, foi acusada de ter em seu acervo um livro de tendências comunistas, o que não era verdade.  O livro, considerado comunista  pelos censores do governo,  era “As aventuras de Tom Sawyer”, do escritor norte-americano Mark Twain. Por conta dessa falsa acusação, a biblioteca foi fechada e a diretora destituída de sua nobre missão. Mais uma arbitrariedade cometida por quem desejava divulgar o livro, a leitura e tinha compromissos com a educação.      

            Depoimentos de usuários dessa biblioteca, como a do poeta Geir Campos, atestam o valor desse lugar mágico para a infância do Rio de Janeiro. Além de atividades ligadas à leitura, a biblioteca oferecia brincadeiras, jogos, atividades artísticas, sessões de cinema. Era uma verdadeira casa de cultura. Com sua prática pedagógica e o olhar voltado sempre para a educação, Cecília Meireles incentivava o gosto pela leitura através da literatura.

            Anos 1950/1960
             Bartolomeu Campos de Queirós, autor de muitos livros para crianças e de livros sobre leitura e literatura, ao recordar fatos da sua infância, vivenciada nos anos 1950, destaca a figura do avô por parte de pai. Chamava-se Joaquim Queirós. O menino foi criado por esse avô durante certo tempo, era o neto preferido de Sr. Joaquim. O avô vivia na janela olhando o povo passar e observando a cidade. Tudo que acontecia, ele escrevia nas paredes da casa – as noticias do lugar: quem viajou, quem casou, quem morreu. Foi nessas paredes que o pequeno Bartolomeu aprendeu a ler. 

            O menino perguntava para o avô: Que palavra é essa? E aquela? E ele ia explicando tudo ao neto. Quando chegou a fase de ir para a escola, já conhecia as letras e sabia ler, foi alfabetizado com os escritos da parede da casa do avô.  Havia também o quintal da casa, lá ele rabiscava com carvão as coisas que ia aprendendo com o avô. Era a sua leitura do mundo.   
   
            Há um depoimento de Bartolomeu Campos de Queirós (2014: 37) muito poético que merece ser registrado. Ele fala sobre o primeiro livro que leu.

            O primeiro livro que li foi o “papel roxo da maçã”. Meu pai viajava e trazia maçãs embrulhadas em papel fino, frio, roxo e muito perfumado. Maçã era coisa rara naquele tempo. Era presente que se oferecia no Natal aos doentes ou aos meninos que procediam bem durante a ausência do pai. Então nós, seis irmãos, colocávamos o papel roxo da maçã entre a fronha e o travesseiro. Durante as noites eu lia no cheiro do papel que existia outra terra. Lia que o mundo não terminava no alto da serra. Sentia a certeza de que havia outro lugar onde maçã se chamava manzana.

            Anos 1980
            A escritora Lygia Bojunga Nunes, primeira escritora brasileira a  ganhar o Prêmio Andersen de literatura infantil, em 1982, conta como foi seu aprendizado com a leitura no texto “Livro: a troca”.  Ela dá lições de vida e fala sobre sua própria vivência com os livros.  Eis o texto:  
Pra mim, livro é vida; desde muito pequena os livros me deram casa e comida. 

Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé fazia parede; deitado, fazia degrau de escada; 

inclinado, encostava num outro e fazia telhado.


E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro.


De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar prás paredes).
Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras.

Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.
Mas fui pegando intimidade com as palavras.
E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas.
Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação.
Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; 
e de barriga assim cheia me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, 
era só escolher e pronto, o livro me dava.
Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que 
- no meu jeito de ver as coisas - 

é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava.
Mas como a gente tem mania de sempre querer mais, 


eu cismei de um dia alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra - em algum lugar - 


uma criança juntar com outros e levantar a casa onde ela vai morar.
Século XXI (Anos 2000)
            Ana Maria Machado, outra escritora de livros para crianças, ganhadora também do Prêmio Andersen de Literatura (2000), foi a primeira escritora de literatura infantil a pertencer à Academia Brasileira de Letras, chegando a ocupar a Presidência da Casa Machado de Assis entre  2012/2013. No livro  “Essa força estranha. Trajetória de uma escritora” (Ed. Atiual, 1996),   relata como descobriram que já sabia ler, isso quando ainda não tinha cinco anos.
            Frequentava a escola e aprendia as primeiras letras. Certo dia a professora enviou para sua mãe um bilhete pedindo papel crepom para as festividades de encerramento do ano letivo. Ana Maria iria tomar parte em uma peça teatral e faria o papel de uma dália. No caminho, a menina leu o bilhete e ao chegar a casa deu o recado à mãe, mas foi logo contestando:  só seria dália se o papel crepom fosse amarelo. A mãe e a professora souberam  nesse dia que Ana Maria já sabia ler. Para seu contentamento, no Natal,  ganhou dois livros de presente da família – “Almanaque do Tico-tico” e “Reinações de Narizinho”.  Outras histórias de suas leituras infantis e juvenis são reveladas nesse livro.   
            Cada leitor tem sua própria história da leitura. Ela é diversificada, pode ser externada por meio de um texto, de um poema, de um quadro, de uma música, de uma escultura. Há muitos caminhos. O professor e crítico literário Hildeberto Barbosa Filho (2017: 123) no texto “Ler só dá prazer”  afirma:

            (...) o ato de ler alcança dimensões além do simples ensinamento. É com eles que ler também dá prazer – só dá prazer. Prazer no sentido mais rico e mais crítico da palavra.

            Para concluir essas breves considerações que objetivou despertar em cada um dos leitores o desejo de revelar a sua própria historia de leitura, segue um exemplo do aprendizado de leitura em forma de um poema em prosa:

             ONTEM/HOJE
            Minha mãe tentou me ensinar a costurar,
            não afinei com o ofício de costureira.
            Meu pai me presenteou com dicionários,
            gostei de ler palavras
            e descobri o mundo dos livros.

            Hoje escrevo para espantar meus fantasmas. 

                                   (NMS)

            REFERÊNCIAS

BARBOSA FILHO, Hildeberto. Os livros (a única viagem). João Pessoa: Ideia, 2017.
COUTINHO, Ana Maria; SANTOS, Evanice. Eudésia Vieira: rompendo o silêncio. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2008.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler – em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora &Autores Associados, 1991,
MACHADO, Ana Maria. Essa força estranha. Trajetória de uma escritora. São Paulo: Atual, 1996.
O´SAGAE. Peter. Uma noite para João e outros poemas. São Paulo: Paulinas, 2017.
RAMOS, Graciliano. Infância. 38 ed, revisada. Rio de Janeiro: Record, 2006.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Contos e poemas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
SANTOS, Neide Medeiros. Autores e livros em contraponto. João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora Ltda, 2016.
VERRUMO, Marcel. História bizarra da literatura brasileira. São Paulo: Planeta, 2017.
 Na web

BOJUNGA NUNES, Lygia. Livro: a troca. Disponível em pausapraleitura. blogspot.com.br/2011/05/so-para-refletir-html- acesso em 17 de julho de 2017.