domingo, 31 de julho de 2011

O essencial de Kafka para jovens


O essencial de Kafka para jovens
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

Tudo que não é literatura me aborrece.
(Franz Kafka)

“Essencial Franz Kafka”, seleção, introdução e tradução de Modesto Carone (Penguin Companhia, 2011) é um livro que introduz o leitor jovem no mundo enigmático e fantasmagórico de Kafka. Contos, parábolas, aforismos e a novela “Metamorfose” integram este instigante livro. Cada texto vem antecedido de um breve comentário do tradutor que é profundo conhecedor da obra de Kafka. Dos 13 contos selecionados, dois nos chamaram a atenção - “O cavaleiro do balde” e “Na galeria”.
“O cavaleiro do balde” foi escrito no inverno de 1916. Nessa época, Kafka morava em Praga, na Rua dos Alquimistas, mas o conto só foi publicado em 1921 em um suplemento de Natal, jornal Prager Press, no dia 25 de dezembro. O texto pode ser lido como conto de fadas à maneira kafkiana ou um conto de Natal.
O protagonista é um homem anônimo que está sem carvão. O frio é intenso, mesmo assim ele arrisca sair de casa e vai até a uma carvoaria para pedir um pouco de carvão. Está sem dinheiro e caminha pelas ruas duras de gelo conduzindo um balde. Diante da porta de uma carvoaria, ele pára e pede:
“- Por favor, carvoeiro, me dê um pouco de carvão. Meu balde já está tão vazio que posso cavalgar nele. Seja bom. Assim que puder eu pago.” (p.130)
O carvoeiro diz que não está ouvindo bem e pede ajuda da mulher para atender a um freguês antigo. Ele o reconhece pela fala e sente-se tocado por aquela voz aflita. A mulher finge não ouvir a súplica do homem e grava bem estas palavras: “pago tudo, mas não agora, não agora”.
As duas palavras “não agora”, parecem um som de sino e se misturam de forma perturbadora ao toque do anoitecer da igreja vizinha. Sabendo que não ia haver pagamento, a mulher desamarra o avental e enxota o pobre homem. Diante da recusa do pedido, o cavaleiro diz em tom de solilóquio:
“Meu balde tem todas as vantagens de um bom animal de corrida, mas não resistência; ele é leve demais; um avental de mulher tira-lhe as pernas do chão.” (p.131)
E o conto termina de forma poética e nostálgica, com destaque para o pensamento do protagonista:
“E com isso ascendo às regiões das montanhas geladas e me perco para nunca mais”. (p.131)
Quem visita a cidade de Praga encontra, em uma das principais praças do centro, uma estátua de bronze com um cavaleiro cavalgando um balde, homenagem ao famoso conto de Kafka.
“Na galeria” é outro texto que merece um olhar mais atento. O conto foi escrito depois que Kafka visitou uma exposição de quadros de Picasso numa galeria de Praga na companhia do amigo Gustav Janouch. Janouch comentou com Kafka que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e as coisas. Kafka não concordou com a opinião do amigo e deu esta interpretação: “Ele apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”. E complementa: “A arte é um espelho que adianta como um relógio”.
Modesto Carone escreveu um longo ensaio sobre este minúsculo conto que foi publicado em “Novos Estudos CEBRAP”, 2008, com o título de “Na galeria, ou o realismo de Franz Kafka”.
Para Carone, Kafka estava “sugerindo que Picasso refletia algo que um dia se tornaria lugar-comum da percepção – não as formas, mas as deformidades”. (p.155)
Na percuciente análise deste conto, formado apenas por dois parágrafos, Carone discute aspectos do emprego verbal. No primeiro parágrafo, há predomínio do subjuntivo que em alemão, tanto quanto em português, designa a irrealidade, um estado de dúvida. No segundo parágrafo, a abundância de verbos no modo indicativo indica o espaço afirmativo da realidade.
Ainda é Carone quem assevera: “Tanto o primeiro parágrafo como o segundo têm o mesmo cenário e no fundo narram o mesmo acontecimento, embora as perspectivas sejam diferentes e a atmosfera dos dois não seja a mesma.” (p.157)
Os aforismos que se encontram neste livro foram reunidos a partir das conversas de Kafka com o poeta Gustav Janouch, autor do livro “Conversando com Kafka”, das anotações dos diários, escritos de 1909 a 1923-1924 e do período em que o pensador de Praga morou com a irmã Otla, em uma propriedade de Zürau.
Carone considera que este tipo de escrita testemunha a preocupação do escritor com a vida e a morte. Os aforismos também coincidem com o gosto de Kafka pela narrativa breve (contos, novelas, parábolas). 109 aforismos foram reunidos neste livro.
Apresentamos apenas uma parte mínima do rico universo kafkiano, o resto fica para o desvelamento dos leitores. Concluímos estas breves observações com este aforismo de Kafka:
“O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está situada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser trilhada”. (p. 189)

sábado, 23 de julho de 2011

“Silenciosa algazarra” – a vertente crítica de Ana Maria Machado


“Silenciosa algazarra” – a vertente crítica de Ana Maria Machado
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

Crítica sempre faz falta. Um artista precisa se acostumar a ver seu trabalho ser comentado pelos outros, virar objeto de discussão de leituras alheias.
(Ana Maria Machado. Silenciosa Algazarra, p.269)

“Silenciosa algazarra: reflexões sobre livros e práticas de leitura (Companhia Das Letras, 2011) é o mais recente livro de Ana Maria Machado na vertente da crítica literária. O livro reúne quatorze ensaios com temas diversos: a censura, a prática da leitura com crianças em hospitais, aspectos da intertextualidade na literatura infantojuvenil, a importância da leitura, entre outros. Esses textos selecionados foram apresentados em congressos, seminários e palestras no Brasil e no exterior. Ainda consta a monografia inédita” Contador que conta um conto faz contato em algum ponto”, texto premiado pelo Instituto Goethe, no concurso comemorativo ao bicentenário dos irmãos Grimm.
Na monografia que conquistou o prêmio do Instituto Goethe, a escritora discorre, inicialmente, sobre aspectos teóricos dos contos populares e depois compara contos recolhidos pelos irmãos Grimm com as versões brasileiras desses contos apresentadas por Monteiro Lobato no livro “Histórias de tia Nastácia”.
No ensaio “A importância da leitura”, apresentado no Encontro Nacional “Crer para Ver”, São Paulo (novembro de 2008), Ana Maria Machado remete o leitor a ideias prazerosas sobre o ato de ler. Para Clarice Lispector, era uma “felicidade clandestina”; Jorge Luis Borges imaginava que “o paraíso era uma biblioteca infinita”; Virgínia Woolf confidenciou, numa carta, que “o céu deve ser uma longa leitura contínua, sem que a gente nunca se canse”; Katherine Mansfield garantia que não havia “maior alegria que a de ler”.
Diante das opiniões de escritores mundialmente consagrados, o que nos diz Ana Maria?
“A leitura abre horizontes mentais e emocionam de forma fantástica. Faz nossa inteligência crescer e permite que nossa passagem pelo mundo seja mais útil para nós mesmos, nossa família, nossa comunidade, nossa sociedade, toda a espécie humana”. (p.27)
Em “História em hospitais”, a escritora relata a experiência que teve com a leitura de alguns de seus livros para crianças hospitalizadas e dá exemplos com livros de outros autores. Ela cita o livro de Graciliano Ramos – “A terra dos meninos pelados” como um livro capaz de fascinar a garotada que passa pela experiência da calvície devido à quimioterapia.
A leitura para crianças internadas em hospitais, nas palavras de Ana Maria, “pode lhes revelar formas de enfrentar seus problemas ou simplesmente distraí-las”. (p.63)
“Nas asas da liberdade” foi fruto de uma palestra realizada em Lima (Peru), no 1º. Congresso Internacional de Literatura Infantil e Juvenil, em 2010.
Além de problemas relacionados com a censura, a ensaísta apresenta depoimentos pessoais que revelam o espírito de independência que acompanha a escritora desde pequena.
A revelação que se segue denota como foi o primeiro contato da escritora com a censura:
“Meu primeiro contato com a censura não foi como criadora, e sim como leitora: na realidade antes de ser leitora, durante a primeira ditadura que vivi, a de Getúlio Vargas, que governou o Brasil de 1930 a 1945. Eu nasci na última semana de 1941.” (p. 197)
Ana Maria gostava muito das histórias de Monteiro Lobato que eram lidas por seus pais em casa. Naquela época, não sabia que os livros de Lobato sofriam variados graus de repressão e recebia orientação dos pais para que não falasse sobre essas leituras.
Nos últimos da ditadura Vargas, o pai de Ana Maria, que era jornalista no Rio de Janeiro, escreveu um artigo no jornal que o censor do governo não aprovou. Por conta disso, o jornal foi apreendido e o pai foi preso. Naquela ocasião, Ana Maria estava na companhia do pai e os dois foram levados para o cárcere. As autoridades permitiram que a menina ficasse com o pai por algumas horas, depois o tio foi chamado e levou-a para casa. Contava apenas três anos.
Algum tempo depois a família se mudou para Buenos Aires, e Ana Maria, que já estava com seis anos, foi matriculada em uma escola.
Um dia, a professora mandou fazer um desenho sob o título: “Esta es mi bandera”. Como brasileira, a menina desenhou a bandeira brasileira e cunhou a frase: “Esta es mi bandera”. A professora explicou que ela devia desenhar a bandeira argentina. Veio um novo desenho, agora sob o título: “Esta es tu bandera”. Novo protesto da professora e a ordem: desenhe a bandeira da Argentina com o título sugerido. A reação da pequena foi desenhar duas bandeiras e a brasileira maior do que a da Argentina. Por este ato de rebeldia, a menina foi expulsa da sala de aula e o pai chamado à diretoria. Para continuar estudando naquele colégio, o pai pediu a interferência do embaixador brasileiro na Argentina.
Quando voltou ao Brasil, ainda criança, foi estudar em um colégio religioso. Certa vez, no pátio, foi feita uma fogueira dos livros de Monteiro Lobato. A mãe não deixou que a menina levasse os livros de Lobato que tinha em casa. Curiosa como toda criança, ela perguntou à professora o motivo da queima dos livros e ouviu esta explicação: Lobato era comunista e alguns livros dele falavam mal da religião e desrespeitava a igreja.
Esses acontecimentos levaram-na a refletir alguns anos mais tarde que “censura não parte somente de governos ditatoriais, ela está associada, também, a fundamentalismos religiosos ou políticos.” (p. 200)
Mas, foi em 1969 que a escritora sentiu os efeitos reais da censura. Eram os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil. Foi presa e proibida de dar aulas na universidade. Partiu para o exílio. Na Europa, durante três anos, enviou contos infantis para a revista Recreio. Nascia, assim, a escritora Ana Maria Machado.
O período da ditadura militar foi muito fértil para os escritores de literatura infantil no Brasil. São palavras da autora: “... a literatura infantil corria em trilhos mais discretos. Era coisa de mulher e de crianças, não era algo que esses generais lessem e ouvissem em toda parte, como a música popular.” (p.204/205).
É compreensível que, nesse período, Ruth Rocha tenha publicado a história do “Reizinho Mandão” e Ana Maria “Era uma vez um tirano”. Nas entrelinhas, evidenciava-se o protesto contra os governos autoritários, mas eram livros para crianças...
Há outros ensaios que merecem leituras e reflexões. Fica a sugestão da semana para os leitores adultos.

domingo, 17 de julho de 2011

Professoras que marcaram vidas






Professoras que marcaram vidas
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

Um bom professor revela o mundo inteiro às crianças, torna-lhes possível aprender a usar suas mentes e, de muitas maneiras, prepara-as para a vida.
(Golda Meir. Minha Vida)

Esta semana trago para os leitores a história de duas professoras – uma fictícia, outra real. “A professora encantadora”, de Márcio Vassalo (Ed. Abacatte, 2010), ilustrado por Ana Terra, é um texto ficcional. “Doses de sonho”, de Eloí Bocheco, texto premiado no Concurso “Leia Comigo” (FNLIJ, 2011), é uma história real e pode ser lida no blog “Sala de Ferramentas”.
Maísa, “A professora encantadora”, era uma professora especial. Olhava para tudo com olho de “assombro e estranheza”, suas aulas eram agradáveis e surpreendentes. Quando estava dando aulas, não queria ser interrompida e colocava este aviso na porta: “Não entre, estamos suspirando”. Suspirar significava diminuir o medo no coração, dividir silêncio e multiplicar poesia no pensamento.
A professora Maísa ensinava os alunos a não ter medo de errar, a escutar, a esperar, a pensar. Ela não tinha pressa para nada e explicava que as surpresas deliciosas estavam guardadas nas coisas simples da vida.
Esta professora tinha uma maneira cativante de ensinar – ela mostrava aos alunos que estranho pode ser só o que a gente ainda não conhece; que alguém só sabe ensinar quando não consegue parar de aprender; que errar pode ser uma forma de caminhar.
A ilustradora Ana Terra, responsável pelas ilustrações do livro, apresenta uma professora bem moderna. Maísa usava bolsas multicoloridas e parecia estar sempre flutuando. Era uma professora meio maluquinha – subia em uma escada para dar certas explicações, escrevia bilhetes na porta da sala para não ser interrompida, tinha sempre um poema para dar de presente aos alunos.
Ana Schirley lecionava na Escola Juçá Barbosa Calado, na cidade de Capinzal, meio-oeste de Santa Catarina. Chegava à escola com os braços cheios de livros. Havia o livro didático de Antônio Ravanelli, mas era pouco usado, o que ela gostava mesmo era de ler poesias, crônicas e capítulos de livros. Lia em voz alta e, naquelas sessões de leitura, os alunos sentiam que as palavras tinham poder, eram arrebatadoras. A própria professora se deliciava com o que lia.
Os textos que a professora Ana Schirley trazia para a sala de aula eram datilografados em estêncil, na máquina de escrever, e impressos em mimeógrafo a álcool. Cada aluno recebia uma cópia, depois a voz apaixonada da professora invadia a sala e as palavras saíam macias como seda.
“O anjo da noite”, na visão poética de Cecília Meireles, era um dos textos preferidos pela professora. A mestra cuidava da memória literária e abria ruas sem fim na imaginação dos seus alunos.
De Cecília Meireles, apresentou “Ou isto o aquilo”, uma coletânea de poemas para crianças. Era um livro mágico. Trazia textos de outros poetas para a sala de aula. Ainda, lia o “Sermão da Sexagésima”, do padre Antônio Vieira. Fazia uma escolha criteriosa de textos para suas aulas.
A crônica “O Cajueiro”, de Rubem Braga, na leitura da professora, encantava a turma toda. Ele caía devagarinho, com muito cuidado para não machucar a casa, e estava cheio de flores. Era setembro. A carta da irmã do cronista esclarece este detalhe.
Eloí mora em uma região onde não se vê um cajueiro, mas confessa que era apaixonada por aquela árvore, sentimento afetivo despertado pelo texto de Rubem Braga que ganhava mais vida quando era lido por Ana Schirley. ( Esta crônica, lembrada por Eloí, levou-me ao passado e veio na minha memória a crônica “A corujinha da madrugada” do mesmo autor e de surpreendente beleza.)
O chão da escola era carcomido, as carteiras riscadas, as vidraças em pedaços, a sala era feia, o quadro de giz esburacado, mas tudo isso era esquecido. Os alunos ficavam seduzidos pelos rituais de leitura empregados por aquela professora dedicada e comprometida com os verdadeiros ideais da educação.
Nas palavras de Eloí Bocheco: “as aulas eram noturnas, mas dentro de nós, o sol brilhava”.
Golda Meir, no livro “Minha Vida”, revela um grande sonho que teve aos quatorze anos - gostaria de ter sido professora por considerar essa profissão a mais nobre e mais satisfatória de todas as profissões.
Maísa, a professora idealizada por Márcio Vassalo, e Ana Schirley, a professora real de Eloí Bocheco, representam o ideal almejado um dia por Golda Meir.

domingo, 10 de julho de 2011

O Presente Misterioso


O Presente Misterioso
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária – FNLIJ/PB)

Música é vida interior e quem tem vida interior jamais padecerá de solidão.
(Artur da Távola)

O ano de 2010 me reservou encontros com muitos livros de literatura para crianças e jovens, livros que podem ser lidos com prazer pelos adultos. Foi uma agradável surpresa a leitura de “O dom” (Ed. SM), de Susie Morgenstein, ilustrado por Cheng Jiang Hong e traduzido no Brasil por Pádua Fernandes.
O livro vem acompanhado de um CD com narração da história por Caco Ciocler, ator de teatro, cinema e televisão, com formação em Arte Dramática (USP). Moacyr Scliar escreveu o posfácio e afirma que contar histórias faz parte da tradição judaica. O escritor cita a Bíblia e o Talmude como fontes de muitas histórias.
Mas isso ainda diz pouco, parafraseando o retirante Severino. Nas faixas de 1 a 12 do CD, a narração vem intercalada por excertos de peças de Louis Dunoyer. Nas outras, de 13 a 19, executam-se excertos de Bach e Paganini. Para completar o quarteto de excelência, o intérprete de violino é Joshua Epstein.
Para que público se destina este livro? Para crianças, jovens, para os contadores de histórias, para mim e para você, meu leitor especial.
Vamos deixar as informações sobre o livro e rumamos em direção à história.
Havia uma família judia que morava em um minúsculo barraco, em uma região do leste da Europa. Não guardava tesouros antigos ou objetos preciosos, assim não temiam os ladrões.
A família Oifetzmil era constituída pela mãe, pai e dois filhos. Chegou um terceiro filho e os pais se sentiram abençoados com a chegada do novo rebento. Era um bebê grande e de aparência saudável. Os pais chamaram-no Oycher, que significa “riqueza” em iídiche.
Quando completou oito dias de nascido, Oycher foi circuncidado, segundo a tradição e costume do povo judeu. Nesse mesmo dia, a família recebeu um presente inesperado – um homem desconhecido trouxe uma caixa para o menino com esta recomendação: “Ninguém abrirá esta caixa até o terceiro aniversário do menino. Nesse dia, após soprar as velinhas, quando lhe cortarem os cabelos pela primeira vez, ele tomará o presente nas próprias mãos.” (p. 12-13)
Após estas palavras, o homem desapareceu e começou o interesse dos vizinhos, amigos, familiares para descobrir o conteúdo da caixa. Surgiram as mais variadas opiniões.
Herchel, o mascate, segurou a caixa e declarou: contém dinheiro; Shayndel, a dona da padaria, tinha outra opinião – são passagens para a América; Feivel, o sapateiro, não tinha ideia alguma, mas arriscou: o conteúdo dessa caixa vai ajudar a criança a trilhar o caminho da liberdade; Beryl, o ferreiro, não concordava. Para ele, o pequeno baú continha uma arma secreta contra os “pogroms”.
Em nota de rodapé, aparece a explicação para este vocábulo: “O termo designa os ataques (agressões, estupros, roubos e assassinatos) cometidos contra os judeus com apoio das autoridades, na Rússia czarista”. (p.18)
Schia, o escrivão, examinava tanto a criança como a caixa e fez a seguinte revelação:
“Meu querido Oycherel, nessa caixa você encontrará uma linguagem universal. Não existe língua mais bela. Não precisará conhecer o alfabeto nem a acentuação.” (p.19)
Oycherel é diminutivo de Oycher.
Moische, o alfaiate, repreendeu Schia e disse:
“Uma língua não pode ser escondida numa caixa. Eu é que sei o que há aí dentro. Vou lhes dizer e verão se não estou certo, meus amigos. Boas ferramentas são o melhor presente.” (p.20)
Para o velho Moische, a caixa continha uma ferramenta. O menino teria uma profissão, o que seria um escudo contra a pobreza.
Faltava a opinião do rabino. Este profetizou: “Aí dentro está o diabo”. E completou: “O que há nessa caixa de vícios impedirá seu filho de cumprir as seiscentas e treze mitzvót.” (p. 26).
Mitzvót são os mandamentos e regras de conduta cotidiana que devem ser seguidos pelo judeu praticante.
Houve silêncio geral depois das palavras do rabino.
O dia do aniversário de Oycher se aproximava. O menino estava com dois anos e meio, não falava, só sabia repetir essas sílabas: “gaga gugu”.
Chegou o dia do 3º. aniversário de Oycher, a misteriosa caixa seria aberta. Para surpresa de todos, Oycher, que até aquela data não falava nada, quando abriu a caixa pronunciou, de forma bem clara: “violino”.
A história prossegue, mas vou terminar por aqui. Não disse tudo, mas disse o essencial.
Quem quiser saber o que aconteceu depois leia o livro, e sinta “a delícia das coisas simples.” A leitura é uma delas.

domingo, 3 de julho de 2011

Urupemba: a cidade dos segredos

Urupemba: a cidade dos segredos
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

Andorinha no fio
escutou um segredo.
Foi à torre da igreja,
cochichou com o sino.
E o sino bem alto:
delém-dem
delém-dem
delém-dem
dem-dem!
Toda a cidade
ficou sabendo.
( Segredo. Henriqueta Lisboa)

Socorro Acioli nasceu em Fortaleza. É jornalista e escreve livros para crianças e jovens. Foi aluna de Gabriel García Márquez na oficina de criação literária em Cuba (2006) e bolsista da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique (2007). É uma cearense andarilha.
Em 2010, a escritora publicou dois livros pela editora Biruta – “A Bailarina Fantasma” e “ Inventário de Segredos”. Os dois livros receberam o selo Altamente Recomendável da FNLIJ. Destinam-se ao público infantojuvenil.
É sobre “Inventário de Segredos”, mais próximo das raízes nordestinas – é um cordel – que teceremos algumas considerações.
Os personagens forma inspirados em pessoas que a autora conheceu em suas andanças pelo interior do Nordeste. O cenário escolhido para o desenvolvimento da história foi uma pequena cidade chamada Urupemba.
Vamos conhecer alguns dos personagens, seus dramas, aspirações e, principalmente, os segredos.
Amadeu Bezerril era o moço mais bonito da cidade, mas não gostava de namorar. A mãe preocupada arranjou uma namorada para o filho – Belinha, uma moça bonita e bem faceira, só ela seria capaz de conquistar o coração do moço. Conversavam, trocavam receitas, beijos bem ligeiros, nada de beijo demorado. Um dia, Amadeu contou-lhe um segredo que guardava a sete chaves e Belinha perdeu o namorado.
Mas Belinha não desistiu, apaixonou-se pelo carteiro, mas o coração do carteiro já pertencia a Dulcineia. Pobre Belinha! Parece que nasceu mesmo para titia.
Dr. Geraldo era doutor sem diploma. Chegou em Urupema fugido da capital. “No curso de medicina/Perdeu a prova final”. E Dr. Geraldo curava toda doença com a tal da homeopatia. “Remédio branco e docinho/ Mas sem nada de alquimia”.
Bem próximo de Dr. Geraldo existia uma pessoa que manipulava o remédio. Quem era essa pessoa? É segredo.
Raimunda Girleuda Batista era o nome de batismo dessa moça. Resolveu, porém, ser artista e pensou com seus botões: “Girleuda é lá nome de gente?” Conseguiu nova certidão com o juiz da cidade e passou a se chamar Keylanne Mary Batista. O juiz guardava um segredo bem escondido, só Raimunda sabia. É fácil entender porque Raimunda conseguiu mudar o nome de maneira tão rápida.
O ex-prefeito Quirino era casado com Rita. “Comprava vestidos e joias/Tudo para vê-la contente”. Quirino morreu de repente e ficou sabendo que era marido traído. O segredo só foi revelado depois que virou defunto.
Em Urupemba todo mundo tem segredo – a moça namoradeira, o moço bonito, o carteiro, o juiz, o prefeito, o padre, o sacristão. Alguns segredos foram revelados, outros estão guardadinhos nas páginas do livro “Inventário de Segredos”. Guardei-os para os leitores curiosos.
O livro começa com o segredo de Amadeu, o rapaz que não gostava de namorar, e termina com Zacarias, o padre que tudo ouviu, anotou em um livro e como vai morar em outra cidade deixou este inventário
Mateus Rios fez as ilustrações. São bem jocosas, condizentes com o texto verbal. O livro é apresentado como se fosse um livro bem antigo, quase artesanal. A cor da capa e das folhas internas em sépia e os tons sombrios das ilustrações conferem um ar de “antigamente”.
Nota. Urupemba, variante de urupema, é uma espécie de peneira de fibra vegetal utilizada na culinária para peneirar milho verde e fazer pamonha.