domingo, 4 de março de 2018

Os trabalhos da mão


OS TRABALHOS DA MÃO  : um ensaio que se tornou uma obra de arte

(Neide Medeiros Santos – Leitora Votante FNLIJ/PB)

A mão é voz do mudo, é voz do surdo  é leitura de cego.
(Alfredo Bosi. Os trabalhos da mão).

            A ilustração em livros para criança é comum em todas as épocas, dos livros mais antigos aos mais modernos.  Nos anos 1930, os romances brasileiros também traziam  ilustrações.  Artistas famosos, como Tomás Santa Rosa, Luís Jardim, Poty e Caribé eram contratados para ilustrar capas e algumas páginas internas dos romances.   Lamento que esta prática não seja mais tão comum em nossos dias.  Na literatura infantil brasileira da atualidade (prosa ou poesia), a ilustração continua tendo um papel preponderante.

 Mas o que dizer do ensaio? Conheço poucos ensaios que receberam a participação de artistas plásticos. “Poética das águas” (Ed. Sebo Vermelho), com textos de Moacy Cirne e Gaston Bachelard, fotografias de Candinha Bezerra, é um bom exemplo de ensaio ilustrado, assim não me causou surpresa quando recebi o livro “Os trabalhos da mão”, (Ed. Positivo, 2017), ensaio de Alfredo Bosi com ilustrações de Nelson Cruz. 

O ensaio de Bosi se encontra no livro “O ser e o tempo da poesia”. É um texto que se aproxima de um poema em prosa.   Como “artista da mão”, para usar uma expressão bachelardiana, o ilustrador  trilhou os caminhos da pintura através de séculos e ilustrou cada parágrafo do ensaio com uma pintura condizente com o texto verbal.

De modo sucinto, segue uma breve biografia dos autores do livro “Os trabalhos da mão”. Alfredo Bosi foi  professor de Literatura Brasileira da USP, é professor emérito por essa mesma Universidade. A partir de 2003 passou a integrar a Academia Brasileira de Letras. Publicou, entre outros livros, “História concisa da literatura brasileira”, “O conto brasileiro contemporâneo”; “O ser e o tempo da poesia”; “Céu e inferno: ensaios de crítica literária e ideológica”; “Dialética da colonização”.

Nelson Cruz ilustra para o mercado editorial desde 1987. Já conquistou vários prêmios, entre eles FNLIJ, APCA, Jabuti e Octogones, na França. Em 2016, “Haicais visuais” recebeu o Troféu Monteiro Lobato da revista Crescer. Na homenagem aos 150 anos da publicação de “Alice no país das maravilhas”, ilustrou “Alice no telhado”. Os originais deste livro participaram de uma exposição “Tea with Alice”, no Museu de História de Oxford, na Inglaterra, e depois na Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal.  

Na adolescência, Nelson Cruz apreciava as pinturas dos grandes mestres nos livros didáticos e nos livros que consultava na biblioteca da escola,  sorvia suas pinceladas, cores, composições e sentia uma grande atração principalmente pelos artistas que se afastavam da elite e da nobreza e voltavam seus olhares para as classes operárias. Ele cita entre os artistas de sua predileção Jean-François Milliet, Gustave Courbert.

Sempre houve a preocupação dos pintores com o trabalho das mãos e isso está registrado na história da pintura.  O ilustrador pesquisou e reproduziu, com sua marca pessoal, as telas de alguns pintores que se dedicaram a representar artisticamente a tarefa manual, desde as mais simples, como lavrar a terra, lavar roupa, até as mais refinadas – a arte da pintura.  Recriou  telas dos grandes mestres e, de forma muito didática, apresentou um esboço das obras originais que deram origem às ilustrações do livro. A esse trabalho de recriação, Nelson Cruz chamou de  “interpretações de clássicos da pintura”.

  O livro “Os trabalhos da mão”, da Editora Positivo, tanto se adapta  para o público juvenil como  para os adultos. Cada fragmento do ensaio vem na companhia de uma ilustração. Ao manusear o livro, o leitor se depara com VAN GOGH, Vincent – “Estudo de mulher camponesa plantando beterraba”; DEBRET, Jean – Baptiste - “Índios na missão de São José”; COUBERT, Gustav –“ Mulheres peneirando trigo” e muitos outros. O olhar caminha do texto verbal para o pictórico.

Apresento dois exemplos que demonstram a interação entre a ilustração e o ensaio. O primeiro é a tela de FILIPPI, Lucienne – “Retrato de Louis Braille”.  O texto escolhido aparece como epígrafe desta resenha – “É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura de cego”. A pintura  de um homem com os olhos fechados vem na companhia de símbolos em braille.

O segundo é o quadro de POTTHAST, Edward Henry – “A lavadeira”. O texto que foi escolhido para ilustrar o fragmento é este: “Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao sol, recolhe-a dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobre-a, guarda-a”. E assim acontece com outros quadros –  texto e pintura  se completam.  

  Este livro vem comprovar que a boa literatura deve ser lida por crianças, jovens e adultos.  O gosto pelo belo, pela arte começa na infância. “Os trabalhos da mão” é um livro de arte para ser compartilhado por muitos.   

            POEMA DA SEMANA
            CANÇÃO

            Pus o meu sonho num navio
            e o navio em cima do mar;
- depois abri o mar com as mãos
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio,
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio.

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

( Cecília Meireles. Viagem)