OS TRABALHOS DA MÃO : um
ensaio que se tornou uma obra de arte
(Neide
Medeiros Santos – Leitora Votante FNLIJ/PB)
A
mão é voz do mudo, é voz do surdo é
leitura de cego.
(Alfredo
Bosi. Os trabalhos da mão).
A ilustração em livros para criança é comum em todas as
épocas, dos livros mais antigos aos mais modernos. Nos anos 1930, os romances brasileiros também
traziam ilustrações. Artistas famosos, como Tomás Santa Rosa, Luís
Jardim, Poty e Caribé eram contratados para ilustrar capas e algumas páginas
internas dos romances. Lamento que esta prática não seja mais tão
comum em nossos dias. Na literatura
infantil brasileira da atualidade (prosa ou poesia), a ilustração continua
tendo um papel preponderante.
Mas o que dizer do ensaio? Conheço poucos ensaios
que receberam a participação de artistas plásticos. “Poética das águas” (Ed.
Sebo Vermelho), com textos de Moacy Cirne e Gaston Bachelard, fotografias de
Candinha Bezerra, é um bom exemplo de ensaio ilustrado, assim não me causou
surpresa quando recebi o livro “Os trabalhos da mão”, (Ed. Positivo, 2017),
ensaio de Alfredo Bosi com ilustrações de Nelson Cruz.
O ensaio
de Bosi se encontra no livro “O ser e o tempo da poesia”. É um texto que se
aproxima de um poema em prosa. Como
“artista da mão”, para usar uma expressão bachelardiana, o ilustrador trilhou os caminhos da pintura através de
séculos e ilustrou cada parágrafo do ensaio com uma pintura condizente com o
texto verbal.
De
modo sucinto, segue uma breve biografia dos autores do livro “Os trabalhos da
mão”. Alfredo Bosi foi professor de
Literatura Brasileira da USP, é professor emérito por essa mesma Universidade.
A partir de 2003 passou a integrar a Academia Brasileira de Letras. Publicou,
entre outros livros, “História concisa da literatura brasileira”, “O conto
brasileiro contemporâneo”; “O ser e o tempo da poesia”; “Céu e inferno: ensaios
de crítica literária e ideológica”; “Dialética da colonização”.
Nelson
Cruz ilustra para o mercado editorial desde 1987. Já conquistou vários prêmios,
entre eles FNLIJ, APCA, Jabuti e Octogones, na França. Em 2016, “Haicais visuais”
recebeu o Troféu Monteiro Lobato da revista Crescer. Na homenagem aos 150 anos
da publicação de “Alice no país das maravilhas”, ilustrou “Alice no telhado”.
Os originais deste livro participaram de uma exposição “Tea with Alice”, no
Museu de História de Oxford, na Inglaterra, e depois na Fundação Calouste
Gulbenkian, em Portugal.
Na
adolescência, Nelson Cruz apreciava as pinturas dos grandes mestres nos livros
didáticos e nos livros que consultava na biblioteca da escola, sorvia suas pinceladas, cores, composições e
sentia uma grande atração principalmente pelos artistas que se afastavam da
elite e da nobreza e voltavam seus olhares para as classes operárias. Ele cita
entre os artistas de sua predileção Jean-François Milliet, Gustave Courbert.
Sempre
houve a preocupação dos pintores com o trabalho das mãos e isso está registrado
na história da pintura. O ilustrador
pesquisou e reproduziu, com sua marca pessoal, as telas de alguns pintores que
se dedicaram a representar artisticamente a tarefa manual, desde as mais
simples, como lavrar a terra, lavar roupa, até as mais refinadas – a arte da
pintura. Recriou telas dos grandes mestres e, de forma muito
didática, apresentou um esboço das obras originais que deram origem às ilustrações
do livro. A esse trabalho de recriação, Nelson Cruz chamou de “interpretações de clássicos da pintura”.
O livro
“Os trabalhos da mão”, da Editora Positivo, tanto se adapta para o público juvenil como para os adultos. Cada fragmento do ensaio vem
na companhia de uma ilustração. Ao manusear o livro, o leitor se depara com VAN
GOGH, Vincent – “Estudo de mulher camponesa plantando beterraba”; DEBRET, Jean
– Baptiste - “Índios na missão de São José”; COUBERT, Gustav –“ Mulheres
peneirando trigo” e muitos outros. O olhar caminha do texto verbal para o
pictórico.
Apresento
dois exemplos que demonstram a interação entre a ilustração e o ensaio. O
primeiro é a tela de FILIPPI, Lucienne – “Retrato de Louis Braille”. O texto escolhido aparece como epígrafe desta
resenha – “É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura de cego”. A pintura de um homem com os olhos fechados vem na
companhia de símbolos em braille.
O
segundo é o quadro de POTTHAST, Edward Henry – “A lavadeira”. O texto que foi escolhido
para ilustrar o fragmento é este: “Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua,
estende-a ao sol, recolhe-a dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobre-a,
guarda-a”. E assim acontece com outros quadros – texto e pintura se completam.
Este livro vem comprovar que a boa literatura
deve ser lida por crianças, jovens e adultos.
O gosto pelo belo, pela arte começa na infância. “Os trabalhos da mão” é
um livro de arte para ser compartilhado por muitos.
POEMA DA SEMANA
CANÇÃO
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
-
depois abri o mar com as mãos
para
o meu sonho naufragar.
Minhas
mãos ainda estão molhadas
do
azul das ondas entreabertas,
e
cor que escorre dos meus dedos
colore
as areias desertas.
O vento
vem vindo de longe,
a noite
se curva de frio,
debaixo
da água vai morrendo
meu
sonho, dentro de um navio.
Chorarei
quanto for preciso,
para
fazer com que o mar cresça,
e o
meu navio chegue ao fundo
e o
meu sonho desapareça.
Depois,
tudo estará perfeito:
praia
lisa, águas ordenadas,
meus
olhos secos como pedras
e as
minhas duas mãos quebradas.
(
Cecília Meireles. Viagem)
Um comentário:
Amo esse poema.
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