sábado, 28 de março de 2009

Pintura e Literatura: momentos criativos-Lasar Segall


Artigo - Pintura e Literatura: momentos criativos

"Pintura é arte de dar felicidade mediante as cores e formas". (Norah Borges)

Neide Medeiros Santos, Neide Medeiros Santos Crítica literária da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil/ PB

Marisa Lajolo organizou e fez a apresentação do livro "Histórias de quadros e leitores" (Ed. Moderna, 2006). Dez escritores, incluindo a própria Lajolo, criaram histórias a partir de quadros de pintura. Alguns optaram por exercícios de criação, outros preferiram registrar fatos verdadeiros.

Cada quadro condiz com a história apresentada. Os pintores retrataram cenas familiares em que o livro aparece sempre como o centro das atenções. Há quadros que apresentam a leitura individual, mas tanto na leitura coletiva quanto na leitura individual o livro e o ato de escrever são os elementos destacados.

No universo de dez textos literários, nove telas e uma fotografia, dois textos e duas telas nos chamaram a atenção de forma particular - o texto de Marisa Lajolo e o de Moacyr Scliar.

O título do texto de Marisa Lajolo - "A pintura é a poesia muda e a poesia é a pintura que fala" - é um pensamento do grego Simonides de Keos que viveu no século V antes de Cristo e remete ao velho parentesco entre pintura e poesia, quando a literatura se representava quase exclusivamente pela poesia. O texto selecionado por Lajolo é o soneto de Machado de Assis - "Soneto circular" e o quadro - "A dama do livro", de Roberto Fontana, que pertence ao acervo da Academia Brasileira de Letras.

Os leitores do jornal "A Gazeta de Noticias", jornal de muito prestígio no Rio de Janeiro, na edição do dia 18 de abril de 1895, encontraram em suas páginas um instigante soneto com um título um pouco enigmático: "Soneto circular". O autor era um nome bem conhecido nas letras brasileiras - Machado de Assis.
A primeira estrofe do soneto nos oferece uma visão do quadro de Fontana:

A bela dama ruiva e descansada,
De olhos langues, macios e perdidos,
C´um dos dedos calçados e compridos
Marca a recente página fechada.
(...)

Quem visita hoje o acervo machadiano, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, se depara com este quadro "La donna che legge", uma pintura de Roberto Fontana, com data de 1882. O quadro pertenceu a Machado de Assis, foi presente de amigos e durante alguns anos esteve ao lado dos móveis e objetos na casa do escritor na Rua Cosme Velho. A referência ao presente do quadro por sete amigos de Machado de Assis pode ser comprovada com a leitura da 3ª estrofe do soneto:

Mas, eis da tela se despega e anda,
E diz-me: - Horácio, Heitor, Cibrião, Miranda,
C. Pinto, X. Silveira, F. Araújo,
(...)

Quanto ao interesse despertado pela tela por parte de Machado de Assis, vejamos a explicação dada por Marisa Lajolo. Passeando, certo dia, pela Rua do Ouvidor, Machado se depara com o bonito quadro na vitrine de uma loja e Lajolo conjectura várias perguntas que o escritor poderia ter feito diante daquela bela figura feminina. Não vamos nos alongar repetindo os possíveis pensamentos de Machado de Assis, vejamos a opinião de Lajolo:

"Eu, por mim, gosto de fantasiar que este quadro, pendurado próximo da escrivaninha onde Machado escrevinhava suas histórias, era uma espécie de lembrete ao autor: lembrava a ele que o leitor pode sempre fechar um livro que não lhe agrada". (p.11).

Se o (a) leitor (a) tiver oportunidade de visitar o acervo de Machado de Assis, na Academia Brasileira de Letras, poderá também criar uma história para esta tela de Roberto Fontana. Fica o convite.

Para ilustrar o pungente texto "Histórias de mãe e filho", Moacyr Scliar se inspirou em um quadro de Lasar Segall que retrata a mãe do escritor, Raquel, nascida em uma região que hoje faz parte da Ucrânia. Os avós de Scliar vieram morar no Brasil e a filha Raquel acompanhou os pais em uma longa viagem que começou de barco, trem e por fim de navio, foi nessa viagem que ela viu, no convés do navio, um rapaz com um livro nas mãos, era David. Raquel havia aprendido a ler com um tio e era fascinada por leitura, conversar com David, trocar idéias sobre livros fez com que a viagem se tornasse menos cansativa.

No Brasil, os dois se encontraram alguns anos depois, namoraram e resolveram se casar. Dessa união - David/Raquel nasceu Moacyr, mas o escritor não teve o prazer de conhecer sua mãe, ela morreu durante o parto e vem uma revelação plena de beleza textual:

"Durante a gravidez a mamãe lia muito. Não para ela, lia para mim. É isso mesmo lia para mim. (...) E segundo ela dizia a papai, sabia até de quais livros eu gostava mais:
- Coloque a mão aqui na minha barriga, David. Você está sentindo o nenê se mexer? Está percebendo que ele bate palmas? É porque eu acabei de ler um conto de Machado de Assis. Nosso filho adora Machado de Assis, David". (p. 63).

Se olharmos para o quadro de Segall, vamos encontrar uma jovem senhora deitada com um livro aberto entre as mãos, repousado sobre o ventre intumescido olhando para o infinito, sonhando talvez com o filho e prevendo que ele seria um escritor. O momento é sagrado, o menino estava bem guardadinho na barriga da mãe. A primeira impressão é que o quadro retrata apenas uma pessoa, mas ali, na barriga da mãe, está escondido um menininho que hoje é um adulto que escreve livros que falam sobre os problemas dos judeus e sobre muitos outros problemas inerentes à natureza humana, todos revestidos de muita beleza e criatividade.

Moacyr Scliar cresceu sem a presença da mãe, formou-se em medicina, tornou-se escritor e admirador de Machado de Assis. Escreveu vários livros que têm como personagem central a figura do escritor da Rua Cosme Velho. "Ciumento de carteirinha", livro que conquistou o 2º. lugar no Prêmio Jabuti 2008, é uma nova versão de Dom Casmurro e um atestado da admiração que o escritor devota a Machado de Assis.

Após as leituras dos textos de Marisa Lajolo e Moacyr Scliar sentimos como é importante visitar museus, academias, centros culturais, ter pais bons leitores, pais e professores que encaminhem seus filhos e alunos para o reino mágico da literatura.

Um comentário:

Anônimo disse...

Neide, inegável é a influência dos pais na formação dos filhos leitores, mas como isso nem sempre acontece é indispensável que a escola desempenhe o seu papel de despertar nos alunos o interesse pela literatura. Bons leitores tb dependem de bons professores!. Adorei o seu texto, deu vontade de ler o livro coordenado pela marisa lajolo: ele me fez lembrar de um passado em que os professores utilizavam quadros para que os alunos escrevessem suas redações. Era um grande desafio e um verdadeiro suplício para os menos criativos... Será que hoje ainda se faz algo parecido? Lara.