Machado de Assis – do século XIX para o século XXI
(Neide Medeiros Santos – Leitora Votante FNLIJ/PB)
Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me
recebes
na sala trastejada com
simplicidade.
(...)
(Carlos Drummond de Andrade. A um bruxo com amor).
Machado de Assis faleceu nas primeiras décadas do século
XX (1908). Muitos dos seus livros (romances, contos, crônicas, poesia, teatro)
foram publicados nos últimos anos do século XIX, mas quase tudo que o “Bruxo do
Cosme Velho” escreveu continua atual. Podemos comprovar essa afirmativa pela
publicação recente de dois livros organizados, respectivamente, por Luiz
Antonio Aguiar – “O Mínimo e o Escondido: Crônicas de Machado de Assis” (Melhoramentos,
2015) e por Ninfa Parreiras – “Mapas Literários: o Rio em histórias” (Ed.
Rovelle, 2015). Esses livros são
endereçados aos jovens.
Luiz Antonio Aguiar é estudioso da obra de Machado de
Assis e sempre descobre tesouros escondidos na vasta produção literária deste
escritor que não envelhece nunca; seus textos são revisitados com frequência por
Luiz Antonio, organizador do livro “Almanaque Machado de Assis: vida, obra,
curiosidades e bruxarias literárias” (Ed. Record, 2008), uma valiosa
contribuição para a fortuna crítica machadiana. Em 2009, este livro ganhou o Prêmio de Melhor Livro Informativo da
FNLIJ. Agora, estamos diante de uma
seleção de crônicas pouco divulgadas e vêm acompanhadas de comentários e
explicações. São trinta textos que nos transportam ao conceito de Ezra Pound,
expresso no livro “ABC da Literatura”:
“Literatura é linguagem carregada de significado”. Pois bem, essas crônicas machadianas às vezes adquirem um matiz de contos e foram escritas
com uma linguagem carregada de significados.
Ninfa Parreiras organizou uma coletânea que tem como
personagem principal uma cidade – o Rio de Janeiro. Ao lado de Joel Rufino dos
Santos, Marina Colasanti, Nei Lopes e muitos outros cronistas que louvaram o
Rio desponta Machado de Assis com o conto “Mariana”. A leitura desse texto vem
comprovar, mais uma vez, que estamos
diante de um escritor que sabe utilizar
as palavras com mestria, principalmente quando se trata de prosa.
A ironia é um dos traços marcantes nos escritos
machadianos. Selecionamos a crônica “Regulamento
dos bondes” (In: “O Mínimo e o Escondido”) que evidencia essa característica
sempre presente.
“Regulamento
dos bondes” foi publicada em 4 de julho de 1883. O bonde era o transporte mais utilizado
no Rio nesse período. O cronista dá sugestões hilárias para os usuários e
enumera dez artigos para disciplinar os
bons modos dos passageiros. O Art. I
refere-se às pessoas acometidas por gripes (os encatarroados). Segundo o
cronista, eles só podem tossir três vezes durante o percurso da viagem e se a
tosse persistir devem adotar duas soluções: descerem do “bond” e prosseguir a
viagem a pé, o que é um bom exercício, ou meterem-se na cama. O Art. VII trata
das conversas em voz alta entre duas pessoas que viajam no mesmo “bond”. A
conversa deve se limitar a quinze ou vinte palavras no máximo, e nunca fazer
referências maliciosas, principalmente se houver senhoras.
Nesse
caso, a ironia se revela contra os maus modos dos passageiros: a solução
proposta para evitar a transmissão de perdigotos àqueles que não estão
“encatarroados” e o limite de palavras utilizadas nas conversas em voz alta
- não deve ultrapassar o número vinte. Vale a
pena ler a crônica toda e desfrutar da ironia que perpassa pelo texto.
Ninfa
Parreiras selecionou o conto “Mariana” ( In: “Mapas Literários: o Rio em
histórias”) que se encontra no livro “Várias histórias”, publicado em 1896.
Durante sete anos (1884-1891), Machado de Assis escreveu contos que foram divulgados
no jornal “Gazeta de Notícias” do Rio de Janeiro. “Mariana” traz a data de 1891.
A
leitura desse conto proporciona um passeio pelas ruas do Rio antigo e uma
investigação sobre os sentimentos dos seus protagonistas – Evaristo e Mariana.
Machado não se limita a descrever os personagens, ele vai além, o que interessa
para este contista é o que se passa no interior desses “seres de papel”, criados
por quem sabe realmente estabelecer um jogo psicológico entre os sentimentos de
seus personagens.
Vamos
ao cerne do conto. Depois de dezoito anos de ausência do Rio de Janeiro, Evaristo
retorna e sente o desejo de rever uma
antiga namorada – Mariana. Foi informado por um amigo que está casada com
Xavier e que o marido passa por sérios problemas de saúde. Resolve, então, visitar
aquela que nos anos da juventude povoou seus sonhos de rapaz.
A
visita acontece. Ao chegar à casa de Mariana é recebido por um criado,
identifica-se e espera pela chegada da ex-namorada. Não sabemos o tempo que
demorou, enfim estamos no tempo psicológico e essa espera pode parecer uma
eternidade. Esse momento sagrado proporciona a Evaristo o prazer de admirar,
pendente da parede, por cima do canapé, o retrato de Mariana. Era uma pintura
da jovem aos vinte e cinco anos, fase do namoro entre os dois. E vem a
observação do narrador onisciente: “O tempo não descolara a formosura. Mariana
estava ali, trajada à moda de 1865, com seus lindos olhos redondos e
namorados.” (p. 126). Quanto tempo durou essa contemplação? Não sabemos, mas foi o tempo suficiente para
Evaristo navegar nas águas do passado e pressentir que Mariana descera da tela
e da moldura e tinha vindo sentar-se junto ao ex-namorado. O que se segue é
inusitado. Machado estaria antecipando o realismo
mágico? Deixamos a resposta com o leitor.
A
denominação dada a Machado de Assis – o “Bruxo do Cosme Velho” se enquadra
muito bem com o que ele representa na literatura brasileira – é realmente um
bruxo no bom sentido – aquele que é
capaz de escrever sobre acontecimentos não imaginados pela lógica humana. Relembremos “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.
O
livro organizado por Ninfa Parreiras esconde outros segredos. O texto de
Agostinho Ornellas é totalmente visual, vem representado por aquarelas das ruas
e dos pontos turísticos do Rio de Janeiro. No conto “Mariana”, Machado nos proporcionou um passeio imaginário pelas ruas antigas do
Rio; Agostinho Ornellas faz um passeio
pelo Corcovado, Pão de Açúcar, Jardim
Botânico, coisas do passado que permanecem no presente.
No
mês que se comemora o Dia do Professor (15 de outubro) e Dia Nacional do Livro
(29 de outubro), desejamos uma boa viagem através da leitura desses dois livros
na companhia de um escritor que atravessa os séculos e permanece sempre novo.
NOTAS
LITERÁRIAS E CULTURAIS
DIA
DO PROFESSOR
No
dia 15 de outubro, foi dia do Professor e para saudar aqueles que têm a nobre
missão de trazer conhecimentos, de educar, de formar leitores, recorremos à professora e poeta chilena,
Gabriela Mistral, com um pequeno excerto do seu belo poema em prosa “Oração da
Mestra”:
“Senhor!
Tu que ensinaste, perdoa-me se eu ensino, se levo o nome de Mestre que levaste
na terra. Concede-me o amor único da minha escola, que nem o sortilégio da
beleza seja capaz de roubar-lhe minha ternura de todos os dias. Mestre, faz
perdurável a minha paixão, e passageiro o desencanto.”
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