quinta-feira, 8 de maio de 2014



Uma viagem literária e gastronômica através do Brasil
(Neide Medeiros Santos. Leitora-votante FNLIJ/PB) 

            A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles. Entregue as suas flores a quem sabe cuidar delas e comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva.
            (José Saramago. Apresentação do livro Viagem a Portugal). 

           
            O mel de Ocara: ler, viajar, comer (Ed. Global, 2013), de Ignácio de Loyola Brandão, é um misto de relato de viagens, palestras sobre livros, literatura e passeios pela gastronomia brasileira. O autor define o livro como crônicas, quase contos, reportagens literárias bem humoradas. Não se esqueceu da formação de leitores, das peculiaridades de cada lugar que visitou, da maneira de se expressar e do vocabulário da cada região. E, naturalmente, das comidas.

            O livro contém  experiências vivenciadas nesses contatos e histórias de viagens por países europeus, mas vamos dar destaque e seguir o roteiro de cidades brasileiras, especialmente, as nordestinas.

            Nossa viagem começa em Ocara. Quem nunca ouviu falar em Ocara, lendo o livro de Ignácio de Loyola Brandão não esquecerá jamais. Ocara é uma pequena cidade do interior do Ceará, tem 22.600 habitantes, fica a 82 quilômetros de Fortaleza.  O escritor recebeu um convite para participar da 6ª Feira do Livro do Ceará e deveria se deslocar até aquela cidade para fazer uma palestra. O público era bem diversificado – estudantes de nível médio, universitários do curso de letras, professores, crianças e mães com filhos de colo.

            Nunca um escritor havia passado por Ocara para fazer uma palestra.  Mais de 200 pessoas se encontravam no Centro Sócio Cultural de Jovens da Vila São Marcos para ouvir a fala de Ignácio de Loyola Brandão.  O clima era de festa. A manhã começou com a apresentação de um reisado com o boi dançando valsas e xotes.  E veio uma grande surpresa - quem fazia o papel do boi era um velhinho de 92 anos, e como dançava!

            Depois das apresentações musicais e folclóricas, o escritor falou de modo bem simples para aquele auditório que demonstrava sede de saber. Todos ouviam com muita atenção, foram mais de duas horas de conversa, de histórias de livros, de experiências com livros e leitura.  Seguiram-se inúmeras perguntas e o que cativou mais o escritor foi a pergunta de uma senhora de “boa idade” – queria saber como se faz um livro, como se colocam as letrinhas em um livro.  A cabocla ficou tão empolgada com a palestra que perguntou:
  
            Será que um dia uma dessas professoras me ensina a ler e a escrever? Achei bonito o que o senhor disse aqui, devia ter sempre. (p.63).
             Fez mais outra pergunta: 

            O senhor aceita um presente? Meu. Feito no meu quintal. Coisa pura. Tenho umas abelhinhas muito trabalhadoras. (p.63).

            E deu o presente ao palestrante – uma garrafa de mel de abelhas com rolha de sabugo de milho. Ela criava abelhas no quintal de sua própria casa – era “um mel puro, perfumado, doce e penetrante”. Diante desse presente valioso, o escritor teve essa reação: Podem me pagar quanto quiserem, nada supera este cachê da cabocla de Ocara.
 
            Da Paraíba, quando veio participar da 1ª Bienal do Livro (2006), as impressões marcantes se referem à beleza dos monumentos antigos e à gastronomia regional. E vem esta observação muito válida:  O centro da cidade antiga foi esquecido ou desprezado pela especulação imobiliária, de maneira que ainda permanecem de pé vários palacetes, casa coloniais (o Pavilhão Chinês, onde as pessoas iam tomar chá à tarde, é lindo, merecia mais cuidado), vestígios de uma arquitetura que fez da cidade um centro sofisticado. (p.79). 

            O convite de Vladimir Neiva, da Grafset, para comer “cabeça de galo” fez o escritor tremer, ele não gosta de frango e muito menos da cabeça. Imaginou-se chupando ossinhos, mas teve de ser gentil com o anfitrião e aceitou o convite. Quando chegou “a cabeça de galo”,  deliciou-se, e aproveitou para dar a receita que não vamos transcrever – todo  paraibano que se preza  sabe decorada.

             Na cidade de Natal (RN), participou de outra Bienal do Livro (2006) e escolheu como tema da palestra – “a busca da palavra perfeita”. Para ilustrar sua fala, começou com um verso de Marize Castro: Palavras quando caem sobre a gente surpreendem,adoçam, cortam”.
            Marize Castro, poeta do Rio Grande do Norte, é uma das vozes mais líricas e atuantes da literatura potiguar. 

            Não faltam as referências à gastronomia do Rio Grande do Norte – patolas de caranguejo, água de coco e ovos de curimatã, o caviar nordestino. Quem é da região do Seridó – Caicó, Jardim do Seridó, Currais Novos (RN), Santa Luzia (PB) gosta muito dessa iguaria, um manjar dos deuses.  

            Quem conhece uma cidade no Brasil onde as crianças leem 20 livros por mês? Ela existe, sim, senhor. É Teresina, capital do Piauí. Na “Casa Meio Norte”, situada no bairro Leste, as crianças têm paixão por livros e pela escrita. Ignácio de Loyola Brandão esteve lá e confirmou tudo.

            O bairro Cidade Leste vive sob o domínio da violência. Lá se encontram os foras da lei, traficantes, ladrões, mas esses meninos que moram na “Casa Meio Norte” vão mudar essa paisagem através do estudo e da leitura.

            Para os meninos que vivem essa dura realidade, o escritor contou a história do “Menino que vendia palavras”, um livro de sua autoria que conquistou vários prêmios nacionais.

            O protagonista desta história é um menino que tem um pai que era um verdadeiro dicionário, sabia o significado de muitas palavras. Se os amigos queriam saber o que significava determinada palavra, recorriam ao menino que se valia do pai. Esperto e inteligente, ele começou a vender palavras, trocava-as por objetos de sua preferência. No final do livro, vem esta lição muito oportuna para a ocasião – quanto maior for seu vocabulário mais chances de conquistar o mundo você terá.
   
 Ele descobriu, no meio daqueles meninos da “Casa Meio Norte”, poetas, escritores, cronistas, contistas. Muitos textos produzidos por essas crianças foram lidos durante esse proveitoso encontro.  O escritor estava diante de crianças que amavam os livros e a literatura.  
            O texto sobre o Piauí termina com essas bonitas palavras:
            Há o Brasil aparente e o Brasil oculto com pessoas admiráveis sobre as quais não cai um foco de luz e elas não precisam, são alimentadas por sonhos e ideais. Brasil que caminha. (p. 72).

            Palavras que parecem saídas da boca de Ariano Suassuna ao repetir a opinião de Machado de Assis no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: Há um “país real” que é bom, revela os melhores instintos e há um “país oficial”, caricato e burlesco”. 

            Diante daquela realidade vivenciada pelas crianças do Piauí, Ignácio de Loyola Brandão estava face a face com o “país real”.

            Há muitas outras histórias, relatos vivos e pungentes de outras regiões do Brasil. Privilegiamos o Nordeste e as observações sobre algumas cidades visitadas pelo escritor, o contato com pessoas simples e cheias de sabedoria e a gastronomia de uma região rica de sabores.

 Não vamos atravessar o Atlântico agora – Lisboa, Costa Brava, Borredà, Roterdà, Frankfurt, Bad Berleburg, Berlim e Paris nos esperam para a próxima viagem.  O trem vai partir e percorrer outras cidades brasileiras e o avião nos espera para atravessar o Atlântico.

 ( Texto publicado no jornal “Contraponto”, João Pessoa,  abril de 2014).

sexta-feira, 28 de março de 2014

A POESIA BATE NA PORTA



  
       A POESIA  BATE  NA PORTA 

          ( Neide Medeiros Santos)

                                   O amor bate na porta
                                   o amor bate na aorta.
            (Carlos Drummond e Andrade. O amor bate na aorta).


            Há certos livros que nos cativam pela poesia que transparece no texto escrito, há outros que deitamos o olhar nas ilustrações e nos encantamos. “Abecedário [poético] das frutas” (Ed. Rovelle, 2013), de Roseana Murray, ilustrado por Cláudia Simões, é um livro que bateu na nossa porta, entrou devagarinho e logo nos apaixonamos. Texto verbal e ilustração caminham juntos na beleza das palavras poéticas e das ilustrações.
            Roseana Murray explica-nos como nasceu a ideia deste livro – ela mora em uma casa rodeada de árvores, na cidade de Saquarema, (RJ) e tem por hábito colocar frutas nas árvores todos os dias de manhã para alimentar os passarinhos. É também uma pessoa apaixonada por frutas, suas formas, sabores, texturas. Reunindo duas coisas de que gosta muito – pássaros e frutas - surgiu esse bonito livro, um abecedário das frutas em forma de poesia.
            O livro de Roseana Murray nos transportou para a brincadeira cantada da escolha de frutas. Qual é o “menino antigo” que não se lembra da cantiguinha: “Passarás, passarás, deixarás passar, se não for o da frente há de ser o de detrás”?  E vinha a escolha entre duas frutas. Geralmente as crianças escolhiam – pera ou maçã, uva ou graviola, frutas nobres. Banana, laranja, frutas populares, eram rejeitadas. Como se existisse nobreza nas frutas!    Cada uma tem o seu próprio valor.
              Alguns aspectos estilísticos nos chamaram a atenção neste livro – foram as comparações visuais. Vejamos a comparação para as bananas: 

            As bananas de casaca
            dourada,
            penduradas como um
um trapézio.

            Cláudia Simões ilustrou o poema com um cacho de bananas bem amarelinhas (douradas) e perto, pousado em uma das folhas da bananeira, um pássaro vermelho e preto tudo observa.  A imagem do cacho de bananas se assemelha a trapezistas pendurados em um trapézio.
            Para o figo, a comparação foi muito feliz:
  
            De feltro, de veludo,
            suntuosa ao toque
            da mão
            como um tecido
            de um tempo antigo.

            Quem já teve a oportunidade de pegar um figo madurinho tem a sensação de estar passando a mão em pano aveludado.  É bem macio.
            A ilustração destaca figos de variados tamanhos, todos bem maduros, um deles picado pelo passarinho, o que nos leva de volta à infância – a história do figo da figueira, bicado pelo passarinho. Dizem que passarinho só belisca frutas doces e fruta beliscada por passarinho não é venenosa. A natureza é sábia!
            No abecedário de frutas, entram duas intrusas: hibisco e zínia.  São flores usadas, muitas vezes, para enfeitar os pratos nos dias festivos.

            Há flores que se comem
            como se fossem frutas,
            numa comunhão entre
            os olhos, a boca e o jardim.

            Novamente a comparação se faz presente. O colorido de certas flores se associa à cor das frutas, principalmente as vermelhas. A ilustradora utilizou vermelhos intensos e amarelos vivos para representar os hibiscos. As zínias vão do vermelho vivo ao amarelo, não faltando borboletas e um casal de beija-flores.  
            Houve dificuldade para encontrar uma fruta que começasse com a letra “E”.  Se não existe uma fruta começada com a letra “e”, a poeta vai dar uma solução e cria uma estrela de carambola e...  então inventa uma fruta estrela. Problema resolvido.
              Chamamos a atenção do leitor para a disposição do texto verbal e da ilustração, tudo muito bem planejado.  A ilustração toma uma página inteira. Na outra página aparece o texto verbal.
            Para ilustrar este livro, Cláudia Simões fez a opção pela aquarela – “sua grande paixão, como meio de expressão”.

            O livro bateu na minha porta com um oferecimento especial:
            Para Neide, com carinho, frutas e poesia, Roseana.  
            O presente foi muito bem-vindo.
( Texto publicado no jornal Contraponto. João Pessoa, 28 de março de 2014).  
   

sábado, 8 de março de 2014

O poder da natureza e da poesia







                             “O poder da natureza” e da poesia
            (Neide Medeiros Santos – Leitora-votante FNLIJ/PB)


                                                  Quanto é grande o poder da natureza.
                                                 (Bráulio Tavares. O poder da natureza).



            Dois livros de poesia de autores paraibanos publicados no 2º semestre de 2013 vieram enriquecer a lírica paraibana – “O poder da natureza” (Ed. 34), de Bráulio Tavares, ilustrado por Jô Oliveira e “Ciclo vegetal” (Ed. Forma/Gráfica JB), de Juca Pontes, capa e projeto de Milton Nóbrega e fotografia de Cácio Murilo.
            Bráulio Tavares escreveu romance, livros de contos, crônicas, cordel e literatura infantil. No gênero de livros infantis, ganhou dois importantes prêmios:  Melhor Livro Infantil do Ano (2006) pela – APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte com o livro “O flautista misterioso e os ratos de Hamelin” (Ed. 34), em 2006,  e o Prêmio Jabuti pelo livro “A invenção do mundo pelo Deus-curumim” (Ed. 34) – Melhor Livro Infantil de  2009.
            “O poder da natureza” (Ed. 34, 2013) é um retorno à literatura de cordel, gênero muito utilizado por Bráulio em seus livros para o público infantil. Neste livro, que contou com bonitas ilustrações  de Jô Oliveira, são apresentados 15 poemas que seguem o modelo de um “martelo agalopado”, modalidade poética  utilizada pelos poetas nordestinos em suas cantorias de versos improvisados. O consagrado ilustrador Jô Oliveira fez as ilustrações com o emprego de xilogravuras, o que condiz muito bem com o cordel.  
            O martelo agalopado é formado por uma estrofe de dez versos decassílabos, isto é, todos os versos apresentam dez sílabas. Há um detalhe no martelo agalopado que merece ser registrado – ele é cantado ou recitado velozmente, de um só fôlego, numa verdadeira torrente de rimas, num martelar sem pausas, sugerindo o galope de um cavalo.
            O poema que abre o livro é uma louvação à malícia (sensitiva), uma plantinha muito sensível que se encolhe toda quando alguém toca em suas folhas. Todos os outros poemas são dedicados aos animais – baleia, camelo, aranha, abelha, pelicano, gato, escorpião, lagartixa, pavão, castor, João-de-barro e vagalume.
            Está enganado quem pensa que Bráulio Tavares se utilizou apenas de sua verve poética para escrever esse livro, nada disso, ele procurou saber como cada animal reage em determinados circunstâncias, seus hábitos alimentares, como alimentam os filhotes e como as aves fazem seus ninhos.
             
            O exemplo que vem a seguir comprova o que afirmamos, tanto no aspecto técnico como semântico: 

                    Quando um gato-do-mato, no sertão,
        por alguma armadilha é apanhado,
        muito tempo ele fica aperreado
        sem poder encontrar a solução.
        Ele aí faz das tripas coração,
        mete o dente na pata que está presa,
        vai roendo com toda ligeireza,
        corta a pata e nem liga para a dor...
        Dá lição de heroísmo ao caçador
        pelo grande poder da Natureza.    
           
             São esses detalhes que  enchem de  surpresa e admiração que o poeta foi buscar nas suas pesquisas. Ele se utilizou do cordel para expressar  beleza poética e transmitir  conhecimentos científicos.
            Lembramos que este livro foi lançado por Bráulio  Tavares na Feira de Livros Infantis na Semana da Criança ( outubro de 2013),  no Zarinha Centro de Cultura, e que contou também  com a presença do xilógrafo Marcelo Soares.
            LEITURA RECOMENDADA:
            Ciclo vegetal: a presença das águas.
            “A água anônima sabe todos os segredos”
            (Gaston Bachelard. A água e os sonhos).
            O livro de Juca Pontes “Ciclo vegetal” é composto de poemas minimalistas.  Não foi escrito para crianças, mas há muitos poemas que serão lidos e apreciados pelos pequenos.
            A fonte inspiradora é a água dos rios e do mar, “todas as águas”, para utilizar uma expressão cara ao poeta Lúcio Lins. As águas dos rios estão presentes   em muitos poemas e lembramos aqui Políbio Alves com a louvação ao rio Sanhauá;   o mar, presença constante na poesia de Lúcio Lins, encontra um porto seguro em Juca Pontes.  As capas retratam, respectivamente, rastros de pés na areia molhada da praia e ondas que se quebram na beira mar, formando uma espuma branca e transparente.
            O livro vem guardado em uma caixa e encaminhamos o leitor para Bachelard, o filósofo/poeta das águas, dos espaços oníricos. Caixas e gavetas apresentam afinidades, servem para guardar, muitas vezes, coisas preciosas e o  livro é um objeto precioso. Quem duvida?
            Com o título “Leveza e precisão”, Hildeberto Barbosa Filho escreveu o prefácio e afirma que “Ciclo vegetal” se impõe como grata surpresa na lírica paraibana e Sérgio de Castro Pinto, responsável pelo posfácio, ressalta que “Ciclo vegetal” é uma poesia de reflexão, de versos pensados, pesados e medidos.
            Dentro do universo poético deste livro, dividido em 17 momentos, alguns deixaram marcas e cito: “Oceano” – pela presença do mar; “Raízes” que traz de volta a infância perdida: “Borborema, rainha” pela afetividade que sentimos pela mesma cidade – Campina Grande.  
            Escolhemos um poema do livro para expressar o poder da poesia e da natureza no “itinerário lírico”, de Juca Pontes:
            Outono
            1
            Sol e lua
            rio e mar

            compõem
            a paisagem

            de forma
            singular.
              
            Seria difícil selecionar os poemas ligados à infância, às brincadeiras infantis, ao lúdico, ao jogo de palavras, são muitos e todos condizem com o espírito irrequieto de quem está descobrindo a vida.