segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O CRÍTICO LITERÁRIO E O FENOMENÓLOGO


O CRÍTICO LITERÁRIO E O FENOMENÓLOGO
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária da FNLIJ/PB)

Da criança podes aprender três coisas: fica contente sem nenhum motivo especial; não se mantém ociosa nem por um instante; e quando precisa de algo, exige vigorosamente.
( Talmud, citado por Ilan Brenman)

Gaston Bachelard, no livro A Poética do Espaço, distingue dois tipos de leitores: o crítico literário e o fenomenólogo. O crítico literário se detém em analisar a obra literária de uma maneira objetiva. Muitas vezes não tem a sensibilidade para detectar a imprevisibilidade das palavras; o fenomenólogo sente a palavra, a palavra do poeta fala com o leitor. Existe um diálogo entre o texto e aquele que lê.
É com o olhar mais de fenomenólogo do que de crítico que nos debruçamos sobre o livro Lendas judaicas, de Ilan Brenman (Ed. Salesiana: 2009), com ilustrações de Renato Moriconi.
Nelly Novaes Coelho, no livro O Conto de Fadas (1987: p.85) conceitua lenda como uma narrativa anônima de matéria supostamente histórica ou verdadeira, guardada pela tradição (oral ou escrita). Nela, o real e o imaginário mesclam-se de tal maneira que é impossível discernir onde acaba o verdadeiro e começa a fantasia. Todos os folclores estão repletos de lendas, que tentam “explicar” de maneira mágica os mistérios da vida e do Universo.
Na apresentação do livro, o autor declara que os contos judaicos têm uma vastidão de temas e “a riqueza dessas narrativas está umbilicalmente associada a mais de vinte séculos de dispersão pelo mundo.”
Contos ou lendas, não importa o rótulo, os textos do livro de Brenman procuram explicar os mistérios da vida e do Universo. Oito contos (lendas) estão presentes neste livro que traz a sabedoria judaica.
Ilan Brenman nasceu em uma pequena cidade de Israel – Kfar Saba. É filho de argentinos, neto de russos e poloneses. Acrescido a tudo isso, desde 1979, mora no Brasil. São trinta anos de vivência brasileira e dezoito anos contando histórias pelo Brasil e mundo afora. Brenman é formado em Psicologia, Mestre e Doutor pela Faculdade de Educação da USP.
Moriconi, o ilustrador, afirma que “procura dar forma, textura e cheiro às palavras”. Para ilustrar este livro, em sua mente vieram as pinturas de Marc Chagall, de Lasar Segall e a voz de Teyve, cantando a tradição no filme “O violinista no telhado”. Essas foram as maiores referências para a criação das imagens do livro.
Após essas explicações a respeito dos elementos paratextuais do livro, dirigimo-nos aos contos. Julgamos pertinente dar uma breve explicação: os elementos paratextuais compreendem as ilustrações, epígrafes, aspectos biográficos, tudo que vem dar colorido e informação sobre o texto.
Os oito contos que integram o livro são narrativas que se prendem à tradição milenar dos judeus. Dois contos trazem títulos que precisam ser traduzidos: O Tzadik e O Talmud.
Tzadik significa justo e este conto fala sobre o homem mais justo e sábio da região de Kiev, o rabino Dov.
Um homem rico e desonesto acusou um pobre mendigo de haver furtado 100 rublos de sua carteira. O rabino Dov é chamado para resolver a questão. O rico comerciante afirmava que havia perdido uma carteira com 400 rublos e que o mendigo havia furtado 100, restando apenas 300.
O mendigo dizia que não havia roubado nada, apenas encontrara uma carteira com 300 rublos.
Conclusão do rabino: a carteira encontrada pelo mendigo não era realmente a carteira perdida pelo comerciante, e ponderou: “Quando alguém encontrar uma carteira com 400 rublos, por favor, devolvam para o verdadeiro dono”.
O melhor deste conto é a sugestão do mendigo: “Tenho uma idéia melhor. Vamos pegar esse dinheiro e fazer um farto banquete para os pobres de Kiev.”
Questão resolvida.
Talmud representa uma grande coleção de livros, produzidos em várias épocas, contendo sabedoria de centenas de rabinos. A primeira parte do Talmud é conhecida como Halachá. É o corpo jurídico da religião judaica; a segunda, Agadá, seria o olhar poético sobre a Escritura. É nesta segunda parte que se encontram as lendas, os contos e as reflexões permeadas com uma voz universal.
Os antigos sábios faziam uma distinção entre Halachá e Agadá. “Halachá seria o pão nosso de cada dia e Agadá seria o vinho que alegra e aquece o nosso coração”. (p. 28)
Um homem bem simples colocou na cabeça que queria compreender o Talmud e procurou o rabino, pedindo-lhe que ensinasse o que havia dentro do Talmud.
O rabino explicou que era muito difícil para um homem simples como ele entender o Talmud, mas, diante da forte insistência, propôs uma questão sobre dois ladrões.
Naturalmente o homem não resolveu a questão, mas ficou satisfeito e continuou o seu caminho.
Os outros seis contos trazem títulos bem expressivos: Inteligência, cavalos e prosperidade, Aprendendo com o aprendiz, Os três conselhos do pássaro, O bem mais precioso do mundo, Os alunos e o astrólogo, O rei Davi, O príncipe Salomão e o ovo cozido.
Aprendendo com o aprendiz conta a história de um mestre e seu discípulo. O mestre pede ao aluno que vá ao açougue e lhe traga o melhor pedaço de carne. O aluno vai e traz a língua. O mestre reclama, dizendo-lhe que pediu a melhor parte que, necessariamente, não é a língua, resolve, então, pedir-lhe a pior carne do açougue. Vai o aprendiz e traz um novo embrulho que contém, também, a língua.
O aprendiz dá a seguinte explicação ao mestre:
“- No mundo dos homens, o que há de melhor e de pior é a língua!
- Quando nossa língua destila veneno, mentira e raiva, não existe no mundo coisa mais terrível. Com certeza é a pior parte do nosso corpo. Mas, quando nossa língua recita poesia, fala de amor e fraternidade, não há parte mais nobre do nosso corpo do que ela.
O aprendiz ensinou ao mestre a virtude da humildade. Tinha razão Guimarães Rosa quando dizia: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. O aprendiz foi um mestre perfeito.
Não vou falar sobre os outros contos, restam ainda cinco.
Para concluir, repito versos utilizados pelos contadores de histórias:
“Entrou por uma perna de pinto,
Saiu por uma perna de pato
Senhor Rei mandou dizer
Que me contasse mais cinco.”

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