sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Moacyr Scliar: o dom da palavra mágica

Moacyr Scliar: o dom da palavra mágica
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)

Ano- Novo, vida nova, é um dito clássico. Que, contudo, raramente se traduz em mudança real. Na maioria das vezes, continuamos levando nossas vidas, mantendo nossas rotinas, postergando nossos projetos revolucionários.
(Moacyr Scliar. A síndrome do ninho vazio, em 09/01/2011)

“Moacyr Scliar: contos e crônicas para ler na escola” (Objetiva, 2011), seleção da professora Regina Zilberman, foi publicado após o encantamento do escritor e reúne textos já veiculados em livros, revistas, jornais. Na apresentação do livro, Zilberman destaca que “Scliar mostra-se não apenas enraizado na vida brasileira, mas sobretudo um escritor comprometido com nossa literatura”. (p.13)
O livro apresenta 49 textos, alguns considerados verdadeiras joias da ficção, como “Missa do galo” (p.51), reconto do texto machadiano sob o ponto de vista da personagem Conceição; “História de mãe e filho” (p.61) é um conto cheio de ternura que envolve um retrato/pintura, uma mãe e um filho. Aqui, mais uma vez, Machado de Assis está presente. Convém lembrar que Scliar era machadiófilo, fez releituras de vários textos de Machado de Assis.
Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre, no bairro do Bom Fim, e a crônica “Os Scliar do Bom Fim” (p. 187) fala sobre sua origem judia, seus tios e primos. Os Scliar tinham um traço em comum: eram todos muito cultos e leitores da Bíblia, o denominador comum da família. Uma cultura que não resultava de estudos no colégio ou na universidade, mas da leitura desse grande livro.
A herança judaica de Scliar leva-o a destacar o papel das mulheres e da família em seus textos. Neste livro, encontramos contos e crônicas que falam sobre a presença da mulher como personagem principal. “A história de Lilith”, “Missa do galo”, “Bonecas”, Mães-coragem”, “Mulheres arteiras, mulheres artistas”, “A primeira transgressora” e “A imbatível Tamar” são bons exemplos de textos em que a mulher é figura de proa.
“Bonecas” (p. 99) condiz com o próprio momento que estamos vivenciando. A crônica fala sobre os presentes dados às meninas no Natal – bonecas simples, sofisticadas, com sensores eletrônicos, grandes, pequenas, tudo depende do poder aquisitivo da família.
Scliar aproveita o tema da boneca para discorrer a respeito da comovente narrativa que envolve Kafka e uma menina freqüentadora de um parque em Berlim. A menina havia perdido uma boneca no parque Steglitz, Kafka encontra a menina muito chorosa e para consolá-la cria uma história fantástica – a boneca não havia desaparecido, apenas tinha viajado. Para saber mais sobre esta história, Scliar indica a biografia escrita por Gérard- Georges Lemaire, publicada em edição de bolso (L&PM).
Mesclando história e ficção, há outro livro muito bonito de Jordi Sierra i Fabra “Kafka e a boneca viajante”, com tradução de Rubia Prates Goldini e que foi publicado, no Brasil, pela editora Martins Fontes (2008). Este livro trata do mesmo tema da boneca viajante e conquistou o prêmio de Melhor Livro para Jovens da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 2009.
Algumas crônicas vêm marcadas pelo humor –“A noiva fujona” (p. 87) é um exemplo de jocosidade. O casamento estava marcado para o último dia de abril. Quando faltava apenas quatro dias, a noiva desapareceu. Policiais desconfiaram do noivo – talvez ele estivesse envolvido no desaparecimento da noiva. Era tudo mentira, a noiva simplesmente havia fugido, tinha desistido do casamento. O fato é verídico e aconteceu na cidade de Duluth, na Geórgia.
“Palavra mágica” (p. 125) fala sobre mudanças, mudança na política, mudança na vida, mudança na fisionomia e lembramos o verso de Camões – “todo mundo é feito de mudanças”. Mas a principal mudança é a mudança interior, esta é a tarefa mais difícil, é uma verdadeira viagem e significa voltar mudado.
Em “Coração de companheiro” (p.215), uma das últimas crônicas do livro, Scliar ressalta a participação de Carolina na vida de Machado de Assis do ponto de vista literário. Carolina era portuguesa, culta, versada em gramática e ajudava o escritor a corrigir os textos. Atribui, ainda, à Carolina, a mudança de estilo do escritor de romântico para realista.
O título da crônica “Coração de companheiro”, uma das últimas crônicas do livro, refere-se à primeira estrofe do soneto” À Carolina”, considerado um mais bonitos da lírica machadiana. Neste soneto, Machado extravasa a dor da solidão, o sentimento do ninho vazio.
“Moacyr Scliar: contos e crônicas para ler na escola” é uma leitura recomendada para este início de férias de janeiro. É uma leitura que permite o leitor conhecer um dos melhores “narradores urbanos da ficção brasileira” e um mestre que tinha o dom da palavra mágica.

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