Ricardo Azevedo: O poeta, o ilustrador e o Caderno Veloz
Entre na minha casa
não repare na nossa felicidade.
Confesso que cheguei a duvidar que
você vinha
mas você veio.
(Ricardo Azevedo.
Caderno Veloz de anotações, poemas e desenhos)
Com o livro “Caderno Veloz de anotações, poemas e
desenhos” (Ed. Melhoramentos, 2015), Ricardo Azevedo ganhou o Prêmio de Melhor
Livro de Poesia da FNLIJ. Estão presentes neste livro o desenhista, o
ilustrador, o poeta, o prosador.
No texto, “A liberdade do gesto, da imagem, da palavra”,
inserido na última página do livro, o autor dá breves explicações sobre o seu
fazer poético e artístico e afirma:
“Tanto os poemas como as imagens do livro são, na minha
cabeça, igualmente “textos’, ocupam o mesmo espaço dentro do trabalho, são
autônomos, nasceram por conta própria, têm sua razão de ser e representam algo
para ser lido e examinado.” (p. 79).
Vamos acatar a
sugestão do poeta/ilustrador: ler e examinar os poemas e as imagens do livro. O caderno é veloz e cabe ao leitor seguir o
ritmo do escritor.
Na página 72, aparece a ilustração de uma moça com quatro
olhos. A visualização dessa imagem provoca certo estranhamento. Se o leitor olhar
atentamente para toda a figura, ela parece duplicada. O olho duplo nos dá uma sensação de
desconforto visual, é a presença do inusitado. Na página 73, encontramos o poema referente
a esta ilustração. E o que diz o poema?
“Começar e fazer e criar
e experimentar e recomeçar e
refazer
e recriar e experimentar e
repensar e rever
e
recomeçar e refazer
[...]
O poema
segue repetindo os mesmos vocábulos. São
17 versos em uma única estrofe. Os dois primeiros
versos estão escritos no tamanho normal das letras, a partir do 3º e 4º. versos
as letras vão diminuindo de tamanho e sempre nessa ordem – de dois em dois
versos há diminuição no tamanho das letras. A duplicidade da escrita se associa
à imagem do olhar duplicado. Se partirmos para o lado semântico do poema,
aí está explícito o trabalho do poeta – “fazer, criar, experimentar, recomeçar,
refazer, recriar, repensar, rever.” Essas mesmas palavras se repetem por todo o
poema.
Na página 60, aparece a ilustração de dois
homens. Um olha para o outro através de uma espécie de binóculo, embora estejam
bem próximos. O poema da página seguinte (p.61) apresenta intertextualidades
com poemas de poetas brasileiros. A primeira estrofe é uma reunião de versos
recriados de Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Drummond, João Cabral de Melo
Neto. De Manoel Bandeira há referência ao poema “Vou-me embora pra Pasárgada”. Segue-se
a primeira estrofe do poema:
“Apagaram
as saudades que eu tinha da aurora da minha vida
Derrubaram
as palmeiras e caçaram meus galhos
Destruíram
o meio e o caminho com pedra e tudo
Mataram
e comeram os galos que teceriam minhas manhãs
e,
não contentes, espalharam endereços falsos de Pasárgada.” (p. 61)
O
único texto em prosa está na página 31, é um amontoado de palavras sem nenhuma
pontuação. O texto começa com a expressão: “Preciso contar o que aconteceu” e
termina com a mesma expressão. Durante a leitura, pensamos em descobrir o que
realmente aconteceu: O que foi? As possíveis respostas estão no próprio texto:
“está tudo meio confuso”, “está tudo aqui entalado na garganta”. A ilustração
para este poema em prosa representa o rosto de um homem duplicado – eu e o
outro? E lembramos-nos dessa proposição – a poesia não é para ser compreendida,
é para ser sentida. E Fernando Pessoa nos ajuda com o último verso do poema
“Isto”: “Sentir? Sinta quem lê!”
“Caderno
Veloz de anotações, poemas e de desenhos” é um livro instigante. Ricardo
Azevedo explica que tanto os poemas como os desenhos foram feitos e refeitos
durante alguns anos, alguns foram retirados de livros anteriores, como “Feito
Bala Perdida e Outros Poemas” e as imagens a partir de 2013, mas as raízes são
bem anteriores.
Minha
admiração por livros de Ricardo Azevedo começou há muitos anos. Fiz uma resenha
para a revista “Afinal” nos idos de 1990 de um livro que me foi enviado por
Jorge Medauar – “Tá vendo uma velhota de vestido azul de bolinha branca no
portão daquela casa ?” (Ed.FTD). A revista e o escritor Jorge Medauar
desapareceram na poeira do tempo. O livro de Ricardo Azevedo foi reescrito e
publicado posteriormente pela Companhia das Letrinhas. O texto foi refeito,
novas ilustrações até o título mudou – “Uma velhinha de óculos, chinelos e
vestido azul de bolinhas brancas”. O título pode ter ficado mais agradável, mas
prefiro a 1ª edição, é uma “lembrança do mundo antigo” – “Havia jardins, havia
manhãs naquele tempo !!!”
( Texto publicado no jornal “Contraponto” – B-2. Paraíba,
15 a 22 de julho de 2016)
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