José Saramago e a literatura
infantojuvenil
E
se as histórias para crianças passassem a ser obrigatória para os adultos.
Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?
(José Saramago)
Quando contava onze anos, José Saramago ganhou de sua mãe
o livro “O mistério do moinho”, de Joseph Jefferson Farjeon, autor inglês de
romances policiais. Este livro pode não ter sido o texto que o encaminhou para
a literatura, mas ficou gravado na mente do menino. Anos mais tarde relatou o
fato como algo importante que aconteceu na sua vida.
Antes
de se tornar escritor, Saramago exerceu várias profissões: serralheiro
mecânico, desenhista, funcionário da saúde e da previdência. Concluiu o curso
secundário e fez cursos técnicos. As dificuldades financeiras da família não
permitiram que prosseguisse nos estudos mais avançados, precisava trabalhar.
Como não podia comprar livros, tornou-se um assíduo frequentador da Biblioteca
Pública de Lisboa. Certamente, foi nesse ambiente povoado de livros que
encontrou seu verdadeiro caminho.
Saramago
escreveu inúmeros romances, diários, poesia, peças de teatro, contos, crônicas,
livros de viagens, memórias. e literatura infantil. Nesse rico universo literário, despontam três
livros de literatura infantil: “A maior flor do mundo” (2001), “O silêncio da
água” (2011) e “O lagarto” (2016). No Brasil, os três livros foram publicados
pela Editora Companhia das Letrinhas.
Já apresentamos em nossa coluna os
dois primeiros livros, resta-nos discorrer sobre “O lagarto”. O livro reúne as
palavras de José Saramago às xilogravuras do ilustrador brasileiro J. Borges.
Foi distinguido com o Selo Seleção Cátedra 10 (Qualidade em LIJ), da Cátedra UNESCO
de Leitura da PUC – Rio. A escolha do Selo Cátedra é feita por um grupo de
pesquisadores e especialistas na área de livros infantojuvenis. A seleção
compreende os 10 livros de valor literário, plástico e editorial que mais se
destacaram no ano. “O lagarto” foi um dos 10 livros selecionados.
Este conto está inserido no livro de crônicas “A bagagem
do viajante”. O texto foi resgatado pelos organizadores da obra do autor e
virou livro infantil. É deleite para crianças
que gostam de histórias fantasiosas e para os adultos que gostam da prosa do
escritor português.
A
figura do lagarto está associada ao dragão, personagem mítico que habita os contos
infantis. Nessa história, ele história aparece de forma inusitada no bairro do
Chiado, um dos bairros mais conhecidos da cidade de Lisboa. Naturalmente esse fato causou grande susto
entre os “transeuntes”. Era um lagarto audacioso, enfrentava as pessoas e os
automóveis. O medo foi generalizado e a rua ficou deserta. “O animal não se
mexeu. Agitava devagar a cauda, erguia a cabeça triangular, farejando.”
Muitas
coisas estranhas aconteceram - uma mulher foi hospitalizada tamanho foi o susto
que levou ao avistar o animal. Veio ambulância, polícia, bombeiros, veio até
uma esquadrilha de aviões. É nesse ponto
da história que surgem as fadas. O que aconteceu depois? Coisas misteriosas que
só são reveladas aos leitores curiosos.
Alguns
aspectos desse conto fantástico chamam a atenção do leitor e cito a riqueza da
linguagem. No primeiro parágrafo da
história, o leitor se depara com o linguajar lusitano, rico em máximas e
dizeres populares. Examine-se:
“De
hoje não passa. Ando há muito tempo para contar uma história de fadas, mas isto
de fadas foi chão que deu uvas, já ninguém acredita, e por mais que venha jurar
e trejurar, o mais certo é rirem-se de mim. [...] Pois vá o barco à água, que o
remo logo se arranjará.”
O
leitor brasileiro pode não usar essa linguagem – “isto de fadas foi chão que
deu uvas” e “vá o barco à água, que o remo logo se arranjará”, mas, certamente,
ficará encantado com essas expressões tão características do falar lusitano.
Outro
aspecto relevante nesse conto está representado pelas expressivas ilustrações de
J. Borges. A ilustração do dragão toma a página inteira, às vezes é todo
vermelho, outras vezes é preto. A boca está sempre aberta com dentes enormes.
No Festival Internacional de Óbidos (setembro
de 2016), houve exposição dessas xilogravuras e das ilustrações de J. Borges.
Saramago gostava muito do trabalho do xilógrafo
pernambucano. Certa vez, referiu-se a J. Borges dessa maneira: “Borges
compreende o mundo de forma aparentemente simples e ao mesmo tempo
profunda.”
O
autor de “O lagarto” era também poeta e a história termina com versos:
Calados, muitos recordam,
Na prosa das suas casas,
O lagarto que era rosa,
Aquela rosa com asas.
Lembrete:
Quem
for a Lisboa não deixe de visitar a Casa dos Bicos, Memorial José Saramago.
Está situada na rua dos Bacalhoeiros, 8.
Foi inaugurada em 2012. É um espaço utilizado para reuniões, recitais,
conferências, seminários, exposições. A Fundação abriga uma exposição
permanente “A Semente e os frutos” que reúne livros de Saramago, manuscritos do
escritor, recortes de jornais, entrevistas, vídeos. Lá está instalado o
escritório de Saramago com sua escrivaninha e objetos pessoais, como óculos,
máquina de escrever. Os restos mortais do escritor estão sepultados ali, sob
uma oliveira trazida de sua cidade natal, o vilarejo de Azinhaga. Ao lado de
todo esse rico acervo, a Casa dos Bicos é uma obra de arte, com muita história.
O edifício foi construído em 1523 por Brás de Albuquerque, após uma viagem que
fez a Ferrara ( Itália). Inspirada no Palácio dos Diamantes tornou-se conhecida
como A Casa dos Bicos.
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