E O POETA VIROU GURIATÂ
(Neide Medeiros Santos –
Leitora votante – FNLIJ/PB)
As pessoas não
morrem, ficam encantadas.
(Guimarães Rosa. Do discurso de posse na ABL).
O
poeta Marcus Accioly virou guriatã e partiu deixando saudades e muitos livros
de poesia, alguns dedicados à literatura infantil, como o premiado Guriatã: um cordel para menino que teve
a 1ª edição em 1980 pela editora EBAL. Seguiram-se outras edições deste livro.
Guriatã: um cordel para menino é
uma composição literária de caráter telúrico. Composto de 91 poemas e cinco notas que
explicam a gênese do livro, o poeta procura resgatar a infância perdida, o
“país-paraíso” do engenho Laureano. O xilógrafo Dila, o ilustrador, traduziu plasticamente
o conteúdo do texto. Modalidades de
cantoria (martelos, toada-alagoana, canções suspirosas, desafios, mourões);
poemas dialogados (de um
Guriatã-de-coqueiro, da volta do Guriatã, dos dois Guriatãs, do retorno de
Guriatã, e do Guriatã por último) e poemas
independentes, de grande expressividade lírica estão representados por (do-trem-de-ferro,
dos elementos). O grande poema se
encerra com um acróstico com o nome do poeta.
O “locus amoenus” da região canavieira não é
privilégio da zona da mata pernambucana nem paraibana (veja-se José Lins do
Rego e os romances do ciclo da cana-de-açúcar) está presente na região da
Provence, tão bem retratada por Paul Cézanne em suas telas; nos riachos e rios da
Champagne, nos escritos poético/filosóficos de Bachelard; no mundo encantado do
sitio do Picapau de Monteiro Lobato; no país de São Saruê, do poeta popular
Manoel Camilo dos Santos.
Para
ser fiel às origens populares, o livro foi ilustrado com xilogravuras do
artista pernambucano – Dila. As xilogravuras impressas, em quase todas as
páginas, seguem a técnica tradicional da xilogravura (preto e branco). O “poeta
da mão”, parar usar a expressão de Gaston Bachelard, caminhou pari-passu com Accioly
que descreve paisagens, animais, mitos populares e eruditos. Dila procura dar “sopro de vida” a tudo que
povoa a mata norte de Pernambuco.
Nos livros
de poesia de Accioly, estão presentes o cordelista e o poeta erudito. Na
entrevista concedida ao jornalista Mário Hélio (Jornal do Commercio, Recife, 3
de março de 1995, p.10), ele assim se expressou:
O cordel foi a literatura da minha
infância, os folhetos do Engenho Laureano, e a cidade de Aliança. Tudo o que
consegui com a poesia (e devo tudo a ela) foi encontrar o possível equilíbrio
entre a lucidez e a loucura, entre a tradição e a vanguarda, entre a inspiração
e a transpiração, entre o popular e o erudito.
[...]
Sou, como já disse, um profissional
do canto. Nada fiz que não fosse poesia. O resto é um arremedo que acabará no
silêncio.
Após essas pequenas
digressões, que consideramos válidas para entender um pouco da poesia e do
poeta, voltemos ao livro.
Guriatã: um cordel
para menino é uma “história-estória” de dois meninos, que se estrutura
seguindo a ordem de um poema épico: prólogo, invocação às musas, episódios,
epílogos.
Todos os poemas do livro vêm numerados por algarismos
romanos. O primeiro poema, um dos mais longos do livro, traz o subtítulo de “prólogo”
e contém nove estrofes distribuídas em sextilhas; o segundo, com o subtítulo
“da família de Sucram”, é formado por quatro estrofes com versos em oitavas.
Nesses dois poemas, temos a apresentação dos protagonistas Leunam e Sucram.
Esses nomes incomuns resultam dos anagramas dos nomes Manuel e Marcus. Manuel
foi um amigo de infância do poeta que morreu muito cedo. No reino do faz de
conta, Leunam se transformou em guriatã.
O terceiro poema apresenta um corte narrativo, traz o
subtítulo “Guriatã de coqueiro” e nele aparece a terceira personagem importante
da história – o pássaro Guriatã. No decorrer da narrativa poética, observamos
que Guriatã passa a integrar a história e recebe o mesmo tratamento dado aos
meninos Sucram e Leunam.
Um dos poemas mais emblemáticos do livro é
“do-trem-de-ferro”, uma homenagem ao avô do poeta – José Pedro Bezerra de Mello
(Dedé). Esse avô tão querido e admirado pelo neto morreu enfartado na estação
ferroviária de Aliança quando Accioly contava dez anos. Com a morte do avô,
acabou-se também a infância do menino.
O poema “do-trem-de-ferro”, visto como um todo, é formado
por um refrão que se repete cinco vezes em cinco estrofes com sete versos em
redondilha menor. O conjunto, no total de 40 versos, ordena-se de forma
simétrica, dando-nos a impressão de um trem com vários vagões encaixados
verticalmente. As estrofes com sete versos cada uma seriam os vagões que
conduzem os passageiros e os refrões seriam os elos que unem os vagões.
Transcrevemos uma
das estrofes do poema “do-trem-de-ferro” para que o leitor sinta como ele se
estrutura.
Quem grita na
noite?
Não vejo ninguém,
é o grito da ponte
debaixo do trem,
é o vento que chora
por morte de alguém,
é o choro das almas
que dizem amém.
Quem grita na noite?
[...]
Este poema, na sua íntegra, foi recitado
pelo poeta Marcus Accioly durante o Congresso Internacional de Literatura
Popular realizado na Fundação Casa de José Américo em 2005. Naquela ocasião, Marcus
Accioly compareceu para o lançamento do livro “Guriatã: uma viagem mítica ao
país-paraíso”.
Um lembrete para aqueles que desejarem adquirir o livro
“Guriatã: um cordel para menino” existe uma nova edição da editora Bagaço.
( Publicado no jornal
“Contraponto”. Paraíba, 27 de outubro de 2017).
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Nota: O jornal “Contraponto” voltou a circular e com ele
o blognastrilhasdaliteratura volta com novidades. Toda semana será publicado um
poema de autor brasileiro. Como leitora
e amante da boa poesia, escolheremos poemas que nos cativam pela beleza poética
e sensibilidade. Para inaugurar essa nova etapa, segue o poema “trem-de-ferro”,
do poeta pernambucano Marcus Accioly, desaparecido recentemente. O poema será
sermpre publicado na íntegra.
XXXIII - do-trem-de-ferro
Quem grita na noite?
Não vejo ninguém,
é o eco do grito
do apito do trem,
é a boca-da-noite
que grita também,
é o eco do eco
que ecoa no além.
Quem grita na noite?
Não vejo ninguém,
é o grito da ponte
debaixo do trem,
é o vento que chora
por morte de alguém,
é o choro das almas
que dizem amém.
Quem
grita na noite?
Não vejo ninguém,
é a boca-do-túnel
na frente do trem,
é o grito sem grito
de um eco que vem
dos montes que aos montes
ecoam mais cem.
Quem grita na noite?
Não vejo ninguém,
é o sonho-barulho
das rodas do trem,
é a luz de uma estrela
que tange belém
no sino-silêncio
que a noite não tem.
Quem grita na noite?
Não grita ninguém,
é o trem dos fantasmas
nos trilhas sem trem,
é a voz dos dormentes
que às vezes contém
o grito da vida
que a morte detém.
( Do livro: Guriatã: um cordel para menino).
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