sábado, 4 de novembro de 2017

E o poeta virou guriatã

E O POETA VIROU GURIATÂ

(Neide Medeiros Santos – Leitora votante – FNLIJ/PB)
            As pessoas não morrem, ficam encantadas.
            (Guimarães Rosa. Do discurso de posse na ABL).

O poeta Marcus Accioly virou guriatã e partiu deixando saudades e muitos livros de poesia, alguns dedicados à literatura infantil, como o premiado Guriatã: um cordel para menino que teve a 1ª edição em 1980 pela editora EBAL. Seguiram-se outras edições deste livro.

Guriatã: um cordel para menino é uma composição literária de caráter telúrico.  Composto de 91 poemas e cinco notas que explicam a gênese do livro, o poeta procura resgatar a infância perdida, o “país-paraíso” do engenho Laureano. O xilógrafo Dila, o ilustrador, traduziu plasticamente o conteúdo do texto. Modalidades de cantoria (martelos, toada-alagoana, canções suspirosas, desafios, mourões); poemas dialogados (de um Guriatã-de-coqueiro, da volta do Guriatã, dos dois Guriatãs, do retorno de Guriatã, e do Guriatã por último) e poemas independentes, de grande expressividade lírica estão representados por (do-trem-de-ferro, dos elementos).  O grande poema se encerra com um acróstico com o nome do poeta.  

 O “locus amoenus” da região canavieira não é privilégio da zona da mata pernambucana nem paraibana (veja-se José Lins do Rego e os romances do ciclo da cana-de-açúcar) está presente na região da Provence, tão bem retratada por Paul Cézanne em suas telas; nos riachos e rios da Champagne, nos escritos poético/filosóficos de Bachelard; no mundo encantado do sitio do Picapau de Monteiro Lobato; no país de São Saruê, do poeta popular Manoel Camilo dos Santos.

Para ser fiel às origens populares, o livro foi ilustrado com xilogravuras do artista pernambucano – Dila. As xilogravuras impressas, em quase todas as páginas, seguem a técnica tradicional da xilogravura (preto e branco). O “poeta da mão”, parar usar a expressão de Gaston Bachelard, caminhou pari-passu com Accioly que descreve paisagens, animais, mitos populares e eruditos.  Dila procura dar “sopro de vida” a tudo que povoa a mata norte de Pernambuco.

Nos livros de poesia de Accioly, estão presentes o cordelista e o poeta erudito. Na entrevista concedida ao jornalista Mário Hélio (Jornal do Commercio, Recife, 3 de março de 1995, p.10), ele assim se expressou:
O cordel foi a literatura da minha infância, os folhetos do Engenho Laureano, e a cidade de Aliança. Tudo o que consegui com a poesia (e devo tudo a ela) foi encontrar o possível equilíbrio entre a lucidez e a loucura, entre a tradição e a vanguarda, entre a inspiração e a transpiração, entre o popular e o erudito.
[...]
            Sou, como já disse, um profissional do canto. Nada fiz que não fosse poesia. O resto é um arremedo que acabará no silêncio.

            Após essas pequenas digressões, que consideramos válidas para entender um pouco da poesia e do poeta, voltemos ao livro.

            Guriatã: um cordel para menino é uma “história-estória” de dois meninos, que se estrutura seguindo a ordem de um poema épico: prólogo, invocação às musas, episódios, epílogos.
            Todos os poemas do livro vêm numerados por algarismos romanos. O primeiro poema, um dos mais longos do livro, traz o subtítulo de “prólogo” e contém nove estrofes distribuídas em sextilhas; o segundo, com o subtítulo “da família de Sucram”, é formado por quatro estrofes com versos em oitavas. Nesses dois poemas, temos a apresentação dos protagonistas Leunam e Sucram. Esses nomes incomuns resultam dos anagramas dos nomes Manuel e Marcus. Manuel foi um amigo de infância do poeta que morreu muito cedo. No reino do faz de conta, Leunam se transformou em guriatã.

            O terceiro poema apresenta um corte narrativo, traz o subtítulo “Guriatã de coqueiro” e nele aparece a terceira personagem importante da história – o pássaro Guriatã. No decorrer da narrativa poética, observamos que Guriatã passa a integrar a história e recebe o mesmo tratamento dado aos meninos Sucram e Leunam.

            Um dos poemas mais emblemáticos do livro é “do-trem-de-ferro”, uma homenagem ao avô do poeta – José Pedro Bezerra de Mello (Dedé). Esse avô tão querido e admirado pelo neto morreu enfartado na estação ferroviária de Aliança quando Accioly contava dez anos. Com a morte do avô, acabou-se também a infância do menino.

            O poema “do-trem-de-ferro”, visto como um todo, é formado por um refrão que se repete cinco vezes em cinco estrofes com sete versos em redondilha menor. O conjunto, no total de 40 versos, ordena-se de forma simétrica, dando-nos a impressão de um trem com vários vagões encaixados verticalmente. As estrofes com sete versos cada uma seriam os vagões que conduzem os passageiros e os refrões seriam os elos que unem os vagões. 

             Transcrevemos uma das estrofes do poema “do-trem-de-ferro” para que o leitor sinta como ele se estrutura.
            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o grito da ponte
            debaixo do trem,
            é o vento que chora
            por morte de alguém,
            é o choro das almas
            que dizem amém.

            Quem grita na noite?
            [...]
            Este poema, na sua íntegra, foi recitado pelo poeta Marcus Accioly durante o Congresso Internacional de Literatura Popular realizado na Fundação Casa de José Américo em 2005. Naquela ocasião, Marcus Accioly compareceu para o lançamento do livro “Guriatã: uma viagem mítica ao país-paraíso”.

            Um lembrete para aqueles que desejarem adquirir o livro “Guriatã: um cordel para menino” existe uma nova edição da editora Bagaço.
( Publicado no jornal “Contraponto”. Paraíba, 27 de outubro de 2017).
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            Nota: O jornal “Contraponto” voltou a circular e com ele o blognastrilhasdaliteratura volta com novidades. Toda semana será publicado um poema de autor brasileiro.  Como leitora e amante da boa poesia, escolheremos poemas que nos cativam pela beleza poética e sensibilidade. Para inaugurar essa nova etapa, segue o poema “trem-de-ferro”, do poeta pernambucano Marcus Accioly, desaparecido recentemente. O poema será sermpre publicado na íntegra.

                        XXXIII - do-trem-de-ferro

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o eco do grito
            do apito do trem,
            é a boca-da-noite
            que grita também,
            é o eco do eco
            que ecoa no além.

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o grito da ponte
            debaixo do trem,
            é o vento que chora
            por morte de alguém,
            é o choro das almas
            que dizem amém.

            Quem grita na noite?
           
            Não vejo ninguém,
            é a boca-do-túnel
            na frente do trem,
            é o grito sem grito
            de um eco que vem
            dos montes que aos montes
            ecoam mais cem.

            Quem grita na noite?

            Não vejo ninguém,
            é o sonho-barulho
            das rodas do trem,
            é a luz de uma estrela
            que tange belém
            no sino-silêncio
            que a noite não tem.

            Quem grita na noite?

            Não grita ninguém,
            é o trem dos fantasmas
            nos trilhas sem trem,
            é a voz dos dormentes
            que às vezes contém
            o grito da vida
            que a morte detém.

( Do livro: Guriatã: um cordel para menino).

           



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