quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Uma vida tecida de palavras


Uma vida tecida de palavras
Neide Medeiros Santos*
Tece, tece,tece, tece, Bem tecida essa cançãoUm a um, fio por fio, Como faz o tecelãoQue fabrica o seu tecidoDe cambraia de algodão. (Marcus Accioly. "Poemeto do Tecelão ou A Canção Tecida") **A trajetória literária de Arriete Vilela começou muito cedo, não importa a data da publicação do seu primeiro livro. No texto de teor autobiográfico, "Alma rendilhada, alma enrodilhada" (1), vamos encontrar a menina de olhar buliçoso a observar a avó fazendo rendas na almofada de bilros e, diante da fascinação do movimento ligeiro e preciso das mãos da avó, a “menina miúda” faz uma revelação: Avó, quando eu crescer, também quero fazer renda, mas não é de linha, não, é de papel. (2) E esse tem sido o trilhar da poeta, cronista, contista, ensaísta e romancista Arriete Vilela – tecer rendas de papel. A leitura dos poemas, contos, crônicas, memórias e romance de Arriete Vilela revela-nos uma escritora preocupada com a arte da palavra, com a tessitura do fazer poético. Se há recorrência temática, essa recorrência vem sempre revestida de uma roupagem nova, o bordado nunca é o mesmo, a palavra tecida adquire nuances diferentes. Arriete gosta de reescrever seus textos e elementos intratextuais se apresentam de forma reiterada. Edilma Bomfim (3), no livro A escritura do desejo, dissertação de mestrado sobre Fantasia e avesso, afirma que: "O recurso do fio da meada faz que o texto de Arriete seja tecido de tal forma que cada novo texto é a paráfrase do primeiro, ou melhor, dizendo; Fantasia e avesso é um intertexto do próprio texto, que se revela na intratextualidade do discurso."Sônia van Dijck, no ensaio "Arriete e o mergulho na palavra" (4), destaca que a produção espaçada de Arriete se deve a necessidade de tempo para amadurecer o texto, e complementa: "Quando um livro seu é entregue ao público, lá estão as palavras exatas, prenhes de polissemia." O professor e crítico literário Roberto Sarmento (5) faz uma observação sobre Fantasia e avesso que pode ser aplicada a outros livros de Arriete. Diz o crítico:
"O grande herói do texto de Arriete, que parece ser o amor, é, na verdade, a palavra. A fantasia e o seu avesso entregam-se, em todas as páginas, a uma luta de vaivéns, avanços e recuos. Todo o texto é a discussão acerca da palavra poética: pretextando falar do amor, o texto fala de si mesmo." (p.31. grifos do autor)Feitas essas considerações preliminares, caminhemos ao encontro do mais recente livro da autora – Ávidas paixões, áridos amores (6). Comecemos pela capa – fotografia de um mar sereno; galhos secos retorcidos que aparecem em primeiro plano e flores de vermelho intenso contrastando com o verde-azul do mar. Esse contraste das cores condiz com o título do livro. “Ávidas paixões” se associam a um desejo intenso, ardoroso, inflamado; “Áridos amores” remetem à dureza, algo seco, frio. O livro, como um todo, compõe-se de 40 poemas não nominados, apenas numerados; os poemas 35, 36, 37 e 38 foram pinçados do livro Vadios afetos. 36 poemas vêm antecedidos por epígrafes e uma epígrafe de Machado de Assis antecede a apresentação dos poemas. Machado de Assis, profundo conhecedor da alma humana, filosofa, com certo pessimismo, na epígrafe escolhida para abertura do livro: "Alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões". No que se refere à escolha das epígrafes, sentimos que foi um trabalho de garimpagem, a escolha acertada para cada poema. Uma breve amostragem dessas escolhas comprova o que afirmamos. O poema 25 traz uma epígrafe de Baudelaire: "O tempo é o obscuro inimigo que nos corrói o coração", e o primeiro verso do poema ratifica a epígrafe: O tempo des/const/rói a vida, e a 5ª. estrofe, formada apenas por um verso, é uma repetição compartilhada da desconstrução: O tempo nos tem des/const/ruído. O poema 38, publicado anteriormente em Vadios afetos, vem acompanhado de uma epígrafe de Mário Quintana: "Amar é mudar a alma de casa." Essa epígrafe se contextualiza, de forma mais evidente, na última estrofe:
E como não recomeçar o jogose, à maneira de Quintana,é o amor que muda a minha alma de casa?Há muito coisa ainda para dizer, mas isso exige um estudo centrado apenas nas epígrafes e há poemas que precisam ser descobertos, palavras que merecem ser contempladas mais de perto. No universo poético de Ávidas paixões, áridos amores, o "Poema 17", que vamos transcrever na íntegra, talvez seja o mais representativo do trabalho artesanal de Arriete Vilela com a palavra:
Poema 17
Não enxerguem um símbolo onde nenhum foi pretendido.Samuel Beckett
Não me interessa o lado direito do bordadoda minha escrita.
Prefiro emaranhar-me aos fiaposdo avesso que sou – em que o tecer, pelos repetidos caprichos, deixa de ser revelador. Não me interessam os registros, à esquerda do bordado, que parecem contar a históriaque os outros pensam ser a minha- e que não é - .
Prefiro pelejar-me nos esgarçamentosdas pontas que não foram devidamentearrematadas e em que ressoam vozes femininas,como se bisavó e avó, mãe e tia pudessem, enfim, reconhecerque se desperdiçaram em amores abrasadorese tirânicos. Aliás, sinto-me cansada da herança dessas mulherescujo bordado da própria vida deixou à mostracores desesperadas, ciúmes desnecessáriose afetos enrodilhados.
Por isso permaneço quietanas flores azuis do linho:só o que me interessaé a interioridadedo bordado. A epígrafe de Samuel Beckett é retomada em forma de versos na 3ª. estrofe do poema, quando o eu-lírico assim se expressa:
Não me interessam os registros, à esquerda do bordado, que parecem contar a história que os outros pensam ser a minha - e que não é -.
Muitas vezes o leitor quer atribuir certos registros como símbolos de uma vida, mas as palavras camuflam sentimentos, dores, afetos e amores. Tudo é e não é, como bem disse Guimarães Rosa. O direito do bordado, na sua aparência, é o lado revelador da verdade, por isso o eu-lírico prefere emaranhar-se nos fiapos do avesso, nas pontas que não foram devidamente arrematadas e permanecer oculta na interioridade do bordado. No início do nosso texto, falamos sobre a presença da intratextualidade nos poemas, contos e crônicas de Arriete Vilela. O "Poema 17" contém muitos elementos intratextuais. “Avesso”, “bordado”, “fiapos”, “tecer”, “afetos” são vocábulos reiterados em seus inúmeros livros. Arriete é uma tecelã que sabe, como nos versos de Marcus Accioly, tecer bem tecida uma canção. Na sua fábrica, ela produz tecidos de cambraia de algodão e borda as palavras em folhas de papel que são lançadas ao vento. Felizes são aqueles que conseguem apanhar algumas dessas folhas.
* Neide Medeiros Santos é ensaísta e crítica literária. ** "Poemeto do Tecelão ou A canção tecida" foi dedicado a Hermilo Borba Filho e publicado no Diário de Pernambuco, Recife, 16 jul. 1967.
NOTAS E REFERÊNCIAS
1. O texto "Alma enrodilhada, alma rendilhada" se encontra no livro Artesanias da palavra. Arriete Vilela et al. Maceió: Grafmarques, 2001, p. 21-22. Esse mesmo texto foi transcrito no livro Memórias rendilhadas: vozes femininas. Neide Medeiros e Yolanda Limeira (orgs.) João Pessoa: UFPB/ Ed. Universitária, 2006. p. 13-14.2. Essa citação está presente no texto "Alma enrodilhada, alma rendilhada", op.cit. 3. A dissertação de mestrado de Edilma Bomfim versou sobre o livro de Arriete Vilela Fantasia e avesso com o título A escritura do desejo. Cf: BOMFIM , Edilma Acioli. Maceió: EDUFAL, 2001, p. 56.4. DIJCK, Sônia van. Arriete e o mergulho na palavra. http://www.soniavandijck.com/arriete.htm. Este texto também foi publicado em Fabulação. Um novo tempo, João Pessoa, ano I, n.5, set.2003, p.12-14 e em O Jornal, Maceió, 12 out. 2003. 5. LIMA, Roberto Sarmento. Da palavra amor ao amor da palavra. In: Leitura. Revista do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, n. 4, p. 9, jul.-dez. 1988.6. VILELA, Arriete. Ávidas paixões, áridos amores. Maceió: Grafmarques, 2007.

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