Tecer considerações sobre livros e autores a partir da literatura produzida para crianças e jovens no Brasil. Os textos deste espaço estão disponíveis para pesquisa; devendo-se, em caso de citação, indicar a fonte, conforme a legislação em vigor: LEI Nº 9.610
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
O Ofício da Escrita -Crônicas para jovens: de amor e amizade” (Rocco: 2010), de Clarice Lispector
O Ofício da Escrita
(Neide Medeiros Santos – Crítica literária FNLIJ/PB)
Será que escrever não é um ofício? Não há aprendizagem, então? O que é? Só me considerarei escritora no dia em que disser: sei como se escreve.
(Clarice Lispector. Como é que se escreve. In: Crônicas para jovens de escrita e vida)
“Crônicas para jovens: de amor e amizade” (Rocco: 2010), de Clarice Lispector, foi comentado nesta coluna há poucos dias. Esta semana o correio me trouxe mais um livro de crônicas de Clarice da mesma editora – “Crônicas para jovens de escrita e vida”. Todas essas crônicas foram publicadas no Jornal do Brasil entre agosto de 1967 e dezembro de 1974.
É de Pedro Karp Vasquez esta pertinente observação: Clarice extraía “da escrita o significado profundo da vida, sua água viva, límpida, regeneradora e redentora, que continua a fluir das páginas de seus textos para os corações de seus leitores.” (2010: p. 11).
Vamos às crônicas para examinar o fluir das páginas e sentir o processo de escrever de Clarice Lispector.
Na crônica “Ainda impossível”, a escritora fala sobre as primeiras histórias que escreveu aos sete anos, todas começavam com “era uma vez”. Naquela época, morava em Recife e enviava os textos para publicação na página infantil das quintas-feiras de um jornal local e nenhuma, “nenhuma mesmo” foi publicada. E vem a explicação da cronista: “... era fácil de ver o porquê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história”. (p.17).
À introdução tradicional dos contos para crianças - “era uma vez” seguia-se uma prosa que se caracterizava pelo inusitado, inovador, próprio da escrita de Clarice adulta, talvez aí resida o motivo da rejeição do jornal.
Uma das crônicas mais líricas do livro traz este título: “As três experiências” e a autora revela as três coisas essenciais na sua vida: amar os outros, escrever e criar os filhos.
A respeito do ato de escrever, vem esta afirmativa: “E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo” (p.127). Embora sentindo que escrever é alguma coisa extremamente forte, ela teme que um dia tenha a sensação de que já escreveu bastante. Será a hora de parar?
Em “Temas que morrem”, ela compara a página pronta para escrever com uma tela. Os pincéis, as tintas e as cores estão esperando o artista, mas às vezes falta o dom para desenhar. Ocorre a mesma coisa com o escritor – a página está pronta para receber a escrita, mas foge-lhe o tema. E a crônica termina com esta indagação: “... escrever não é quase sempre pintar com palavras?” Pergunta muito oportuna para quem lida com a Palavra e, de modo geral, com a Arte.
O escrever pode extrapolar os limites da palavra. Para Paulo Freire, a leitura do mundo precede à leitura da palavra. Acrescentamos que o ato de escrever não está restrito à escrita tradicional, podemos escrever com tintas e pincéis, escrever uma escultura, uma coreografia, um gesto. A escrita está em tudo, faltam olhos para ver e descobrir. Clarice tinha consciência da abrangência da escrita, daí a alusão à pintura.
Na crônica “Escrever para jornal e escrever livro”, a cronista faz uma distinção bem clara e concisa: “... num jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior liberdade, sem compromisso imediato com ninguém.” (p.97)
Esta outra afirmativa demonstra quanto Clarice era consciente do modo como se escreve para jornais: “... o leitor de jornal, habituado a ler sem dificuldade o jornal, está predisposto a entender tudo. E isto simplesmente porque jornal é para ser entendido” (p. 98)
Esses dois livros de crônicas de Clarice Lispector são destinados ao leitor jovem, mas isso não impede que os adultos leiam e se identifiquem com certos temas, afinal a boa literatura não tem público específico, é de todos e para todos.
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