segunda-feira, 9 de março de 2015

Histórias brasileiras de cães

Histórias brasileiras de cães
            ( Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB)


            O fato de o cão ser fiel ao homem não quer dizer que ele aprove as ações do dono.
            ( Carlos Drummond de Andrade. In: Histórias brasileiras de cães)


            Rogério Ramos, neto de Graciliano Ramos, sempre gostou de animais e organizou a antologia “Histórias brasileiras de cães” (Ed. Positivo, 2014). O livro recebeu bonitas e delicadas ilustrações de Lelis.

            Neste livro, encontram-se dezoito textos que compreendem   fragmentos de romances – “”Quincas Borba, o cão”, de Machado de Assis,  “Baleia”, de Graciliano Ramos,  contos “Firififi”, de Dalton Trevisan e a crônica saborosa de Rubem Braga – “Lembrança de Zig”.
   
O organizador da antologia afirma que é muito comum a publicação de bestiários nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil são encontrados apenas “esporádicas coletâneas genéricas de tema animal”.

A leitura desses textos demonstra que alguns cães, retratados de forma real ou ficcional, se tornaram verdadeiros personagens irresistíveis, como aconteceu com o cão Quincas Borba, de Machado de Assis, e Baleia, de Graciliano Ramos.  O retrato físico e psicológico desses animais é tão real que integram  a galeria de grandes personagens da literatura brasileira, ao lado de Capitu ( Machado de Assis) e Fabiano  (Graciliano Ramos).
 
Rogério Ramos selecionou o capítulo XXVII do romance “Quincas Borba”. Neste capítulo, Rubião trata o cachorro Quincas Borba ( nome do antigo dono) geralmente com rispidez, foi uma herança deixada pelo antigo dono.   O narrador analisa os sentimentos do cachorro nas situações de mau humor de Rubião, muitas vezes o cão é escorraçado com um tabefe e reconhece a sua insignificância.

Graciliano Ramos era considerado um homem amargo, taciturno, mas no romance “Vidas Secas”, no capítulo dedicado à Baleia,  apresenta-nos a cachorrinha como uma “criaturinha”  dotada de sentimentos humanos. Foi esse capítulo selecionado pelo organizador da antologia.

Baleia não compreende que está doente e deve morrer, vê apenas as pessoas que ama e não desconfia a proximidade de seu fim.  A descrição da doença de Baleia, os preparativos para sua execução, o temor dos filhos de Fabiano,  tudo é detalhado minuciosamente com grande dose de poeticidade.  Neste capítulo, vamos encontrar um narrador muito humano, excessivamente humano. 

 Dalton Trevisan presenteia os leitores com a história de “Firififi”, uma cadelinha “pequinesa” que acompanha a vida de uma  menina e faz mil estripulias na casa. A menina cresce, torna-se uma mocinha e Firififi está velhinha, agora tem onze anos e não deve durar muito. Os interesses da dona são outros – namorado, faculdade  e Firififi curte sua velhice esquecida em um canto da sala, aguardando a indesejada das gentes.

 Rubem Braga, o inesquecível cronista, comparece com a crônica “Lembrança de Zig”. Zig não era um cachorrinho pequeno, era um “cachorrão” e detestava pessoas com farda. O carteiro foi obrigado a deixar a correspondência na casa da vizinha, não podia vê-lo que corria para abocanhá-lo. Tinha um costume esquisito, gostava de frequentar a igreja, isso porque aos domingos a dona da casa ( a mãe do cronista)  ia à missa,  e bastava um pequeno descuido, portão aberto ou mal fechado,  e Zig aparecia na igreja inspirando medo às velhinhas com seu tamanho descomunal.
 
Ouvi, certa vez, a emocionante história de Tina, uma cadela da raça boxer que morreu com nove anos, idade considerada velha para essa raça.  Tina vivia presa no quintal. A dona dava comida e água todos os dias. Latia, com satisfação, quando via a menina,  abanava o rabo demonstrando alegria mas nunca entrou  dentro de casa, desconhecia os cômodos. Era uma casa grande com primeiro andar. Na parte térrea, ficavam as salas, cozinha, banheiro social; no pavimento superior, os quartos.

Um dia Tina adoeceu, a menina, agora uma mocinha de 16 anos, levou-a ao veterinário, estava com um caroço na perna e veio o diagnóstico: era um câncer. Tina foi operada, recuperou-se por uns tempos, mas o veterinário avisou – o câncer poderia voltar. Depois de seis meses, Tina começou a emagrecer, já não queria comer, beber água não podia, a dona voltou ao veterinário e veio a triste noticia – Tina estava com metástase, teria poucos dias de vida. E veio a pergunta: “Quer sacrificar a cadela?” “Não. Prefiro ficar com ela em casa até que a morte venha buscá-la.”

Certo dia, a moça ouviu passos arrastados na escada. Era manhã cedo e estava ainda deitada na cama. Teve uma surpresa quando viu Tina aos pés da sua cama, duas grossas lágrimas saíram dos seus olhos, deitou-se e ali, aos pés  de sua dona, deu o derradeiro suspiro.

Essas histórias de cães vêm mescladas com realidade e ficção. Quincas Borba, Baleia e Firififi não existiram, mas Zig e Tina participaram da vida do cronista Rubem Braga  e da vida da pessoense Talita.

NOTAS LITERÁRIAS E CULTURAIS

NOTÍCIAS DA FNLIJ

A escritora Marina Colasanti e a ilustradora Ciça Fittipaldi são candidatas ao Prêmio Hans Christian Andersen – 2016 . A primeira na categoria de escritora, a segunda como ilustradora. Lembramos que o Brasil já conquistou três prêmios Andersen ( Nobel da Literatura Infantil) com as escritoras – Lygia Bojunga Nunes (1982), Ana Maria Machado (2000). Em 2014,  Roger Mello foi o vencedor na categoria de ilustrador. Isso demonstra a grande importância da literatura infantil brasileira.  Dentro de trinta  anos,  três prêmios conquistados.  E registramos o desabafo de Ana Maria Machado – reclamam que os escritores brasileiros nunca conquistaram o Nobel de Literatura e se esquecem de que o  Andersen já foi atribuído a três brasileiros. É a velha história – literatura infantil é literatura para pequenos. Falso engano – a literatura infantil deve e tem que ser melhor do que a literatura escrita para adultos. É a literatura que forma leitores. Vejam que missão importante – formar leitores. Valorizemos a boa literatura feita para crianças e jovens.    


( Publicado no jornal “Contraponto”, Paraíba, 06 de março de 2015, B-2)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Tá pronto seu lobo? E outros poemas












Tá pronto seu lobo? E outras brincadeiras infantis 
( Neide Medeiros Santos - FNLIJ/PB) 


                        Se a poesia bater à porta,
                        abra como a um amigo.
                        Poesia é luz,
                        alimento e abrigo.
            (Eloí Bocheco. Abrindo a porta. In: Tá pronto seu lobo? E outros poemas).

            Quando pensamos no binômio criança/música, lembramo-nos das cantigas de roda e das brincadeiras infantis de rua. Qual foi o menino ou menina que não brincou de pega, chicote queimado, anel, Tá pronto seu lobo? E as cantigas de roda: Terezinha de Jesus, A canoa virou, Sapo cururu, Roda pião? Elas estão presentes na memória de quem brincou nas calçadas das pequenas cidades nas noites de lua cheia.  

 Se hoje não encontramos crianças brincando de roda nas calçadas, principalmente nas grandes cidades, nas escolas essas brincadeiras ainda têm um lugar reservado.  CDs e DVDs com cantigas de roda são publicados todos os anos pelas editoras brasileiras e os escritores revisitam essas cantigas através da poesia ou de textos memorialísticos. 

            Eloi Bocheco, no livro “Tá pronto seu lobo? E outros poemas” (Ed. Formato, 2014), retoma algumas dessas cantigas e brincadeiras infantis de forma criativa e prazerosa. Os poemas do livro podem ser agrupados em: cantigas de roda, brincadeiras infantis, parlendas e poemas independentes. O trabalho de recriação está presente em todas as modalidades.

            Em nota que aparece na última página do livro, a autora explica que “Os primeiros acordes de poesia vieram da boca dos contadores e declamadores” de sua infância e que foi uma grande “ouvidora poética” dos cantares e do cancioneiro oral.

            O livro “Tá pronto seu lobo? E outros poemas” nos levou ao encontro de “Cancioneiro da Paraíba”, coletânea organizada por Maria de Fátima Batista e Idelette Fonseca dos Santos que reúne um vasto repertório de cantigas de ninar, cantigas de roda, parlendas e outras cantigas que são encontradas em diferentes regiões da Paraíba, abrangendo o litoral, brejo, cariri e sertão.

            Chamamos a atenção do leitor para este aspecto: as organizadoras do “Cancioneiro da Paraíba”, publicado em 1993 pela editora Grafset, foram fiéis as transcrições dos textos coletados. Oitenta e seis informantes, de origem paraibana ou aqui radicados, apresentaram cantigas, parlendas, orações, tudo fruto da vivência com a cultura popular paraibana. Eloí Bocheco apelou para a memória e imaginação, deu “hora e vez” à sua veia poética. De forma lúdica, deixou transparecer o eu poético de maneira livre e descompromissada.

            Um confronto entre a cantiga “Alecrim” que aparece no “Cancioneiro da Paraíba” e no livro “Tá pronto seu lobo? E outros poemas” denota, por parte das pesquisadoras, a fidelidade ao texto cantado, enquanto que em Eloí aflora a poeticidade e liberdade poética.

            Alecrim,
            Alecrim dourado
            Que nasceu no campo
            Sem ser semeado.

            Ai! Meu amor
            Quem me disse assim
            Que a flor do campo
            É o alecrim.

(Alecrim do Campo. In: Cancioneiro da Paraíba. Idelette Fonseca dos Santos e Maria de Fátima B. de M. Batista (Organizadoras). João Pessoa: Grafset, 1993, p. 140 Cantado por Miriam M. Machado, Queimadas, PB).

            O poema de Eloí traz o título – “Alecrim” e apresenta três estrofes. Iremos fazer a transcrição apenas da 1ª estrofe e já podemos sentir as diferenças:
   
            Alecrim,
            alecrim dourado
            que nasceu do campo
            sem ser semeado.
Diga, alecrim,
se você é encantado
se veio do céu,
ou de outro lado.
(Alecrim. Eloí Bocheco. In: Tá pronto seu lobo? E outros poemas. Ed. Formato, 2014, p.31).

Os quatro primeiros versos são iguais nas duas cantigas, a partir do quinto verso observamos as diferenças, mas nas duas canções, a planta é tratada de forma personificada. Na segunda versão, o apelo para que o alecrim se manifeste - “se é encantado, se veio do céu ou de outro lado” - se verifica através do modo imperativo, um imperativo que pede uma resposta, porém sem as imposições que caracterizam esse modo verbal.
  
Os dois livros apresentam maneiras distintas de registrar as cantigas de roda. O “Cancioneiro da Paraíba” é um trabalho investigativo, uma pesquisa; o outro é um livro de poemas e não se prende ao registro fiel do que foi cantado, o poeta é livre para modificar, ampliar, externar seu eu poético como lhe apraz.

Lembramos que o livro “Cancioneiro Paraibano” foi ilustrado com bico de pena pelo artista plástico Domingos Sávio, natural da Paraíba, e traz o registro musical das cantigas, resultado também de pesquisas, de Maria Alix Nóbrega Ferreira de Melo. “Tá pronto seu lobo? E outros poemas” recebeu ilustrações de Suryara Bernardi que tem formação em Design Gráfico. As ilustrações são grandes, graciosas e vêm marcadas por um toque de charme aliado ao humor.
   
“Cancioneiro da Paraíba” nasceu em terras paraibanas, “Tá pronto seu lobo” veio de terras mais distantes – Santa Catarina. De um lado, a pesquisa, a coleta precisa dos dados, os registros orais, do outro, a junção do real com o imaginário, é a poesia abrindo a porta e pedindo alimento e abrigo.

LEITURA RECOMENDADA
            Os ratos amestrados fazem acrobacias ao amanhecer. Políbio Alves. João Pessoa: FUNESC, 2014.
            Ganhador do Prêmio Augusto dos Anjos – 2013, o livro de contos de Políbio Alves “Os ratos amestrados fazem acrobacias ao amanhecer”  apresenta sete contos que se caracterizam por uma linguagem entrecortada, “estilo soluçante” à moda de Samuel Rawett, isto é, um estilo marcado por pausas. Na literatura brasileira, além de Rawett, Graciliano Ramos também foi adepto desse estilo. E lembramos o conto “Gringuinho”, de Rawett, uma verdadeira aula de concisão. Políbio  aprimora-o. Há frases que exigem apenas uma palavra ou uma breve expressão,  como no conto “Meteorango dia”:
            Nada. E tudo. Coisas do cotidiano. Desaforadas. (p.9)
            Cabe ao leitor polibiano completar o que o contista apenas sugere.

( Texto publicado no jornal "Contraponto". Paraíba, 30/01 a 05 de fevereiro de 2015) 






Marcos Bagno: um escritor múltiplo

            Marcos Bagno: um escritor múltiplo

            Escrever sempre foi para mim um jeito de me conhecer mais a fundo, de refletir melhor sobre o que eu penso, quero e sei.
            (Marcos Bagno. In Murmúrio).  


             Marcos Bagno é escritor, professor, dicionarista e tradutor mineiro. Gosta de viajar e já morou em diversas cidades do Brasil. Nos anos 1990, morava em Recife no Poço da Panela, era aluno do Mestrado em Letras na UFPE e escrevia livros para o público infantil.   O gosto pela literatura infantil perdura até hoje, mesmo dedicando-se ultimamente ao magistério na UNB.

            O autor costuma dizer que só escreve porque lê. E quando as pessoas perguntam o que devem fazer para se tornar escritores, dá sempre essa resposta: “Leiam muito primeiro, porque quem não lê não escreve”. Fica a lição para aqueles que têm a pretensão de ser escritor.  

            Além de escrever livros voltados para a linguística, dicionários, temas ligados à leitura, Marcos Bagno sempre volta aos infantis. Escrever para crianças e jovens é uma das paixões desse escritor múltiplo. 

            Nos anos 1995/1996, encantei-me com dois livros escritos por Bagno – “O papel roxo da maçã” e “Um céu azul para Clementina”. O título deste primeiro livro foi inspirado em uma fala de Bartolomeu Campos de Queirós no Encontro do Prêmio Nestlé de Literatura (São Paulo - 1988). Falando sobre sua experiência com a literatura, Bartolomeu confessou que a sua primeira leitura fora o papel roxo da maçã que seu pai trazia das longas viagens (o pai de Bartolomeu era caminhoneiro). “Um céu azul para Clementina” é um livro de temática ecológica. O texto gera uma discussão em torno de problemas ligados à poluição.

            Os anos se passaram e Bagno continuou escrevendo para crianças. Pela editora Positivo (Curitiba), tem publicado vários livros para o público infantil. “Marcéu” (Positivo, 2013) recebeu prêmios nacionais, entre eles, o Prêmio Brasília de Literatura (categoria juvenil), o Prêmio Glória Pondé da Biblioteca Nacional e o selo Altamente Recomendável da FNLIJ (2013). Este livro é uma homenagem a seu irmão Marcelo, desaparecido nas águas de um rio após forte chuva. O fato é real e Bagno transformou o drama vivenciado pela família em ficção. Na internet, encontramos um vídeo em que o escritor lê trechos desse livro. É só conferir.
   
            Mais recentemente recebi o livro “Murmúrio” (Ed. Positivo, 2014) que guarda afinidades com histórias de encantamento e se caracteriza por uma linguagem poética. A leitura é tão cativante que não conseguimos parar no meio, nosso desejo é continuar a leitura até encontrar o ponto final.

            Aproveitando-se de uma antiga lenda sobre um sábio chinês que sonhava que era uma borboleta, Bagno escreveu uma história que envolve um encontro com uma borboleta, um sonho e a doença de um príncipe.
 
            O primeiro parágrafo do livro demonstra que estamos no mundo  encantado das palavras:  
            Num pequeno reino escondido entre as montanhas mais altas deste lado do mundo, a nove dias de viagem a pé dos muros de sua bela capital, morava em absoluta solidão um homem muito idoso, numa choupana às margens da grande estrada rasgada à sombra das vertiginosas vertentes. (p.7).

            E o que fazia esse homem solitário? Cultivava flores de várias qualidades, tamanhos e odores. Sua maior alegria era poder alegrar a vida das pessoas presenteando-as com flores.

            Um dia, cuidando do jardim, descobriu uma borboleta de indescritível beleza. O sábio jardineiro apaixonou-se pela borboleta, conversava com ela, tinha carinhos de pai. Agora não era apenas o jardim que exigia sua atenção, tinha outra tarefa a cumprir – cuidar da bela borboleta.

                Depois de alguns dias, observou que a borboleta escolhera uma folha, a maior de todas, e se escondeu sobre ela. O que estaria fazendo naquele esconderijo? Não quis espiar o que estava por trás da folha para não ser indiscreto. Saindo do seu recolhimento, a borboleta alçou voo, veio um pássaro vermelho apanhou a frágil borboleta e engoliu sem deixar vestígios. O jardineiro ficou desconsolado.

            E o narrador continua com sua prosa poética:
            Foi tudo tão veloz e tão triste que o jardineiro demorou alguns minutos até perceber que aquela história de amor, que mal tinha começado, já pertencia as páginas amareladas do livro da saudade. E por isso ele chorou uma única lágrima, pequena como a borboleta desaparecida, mas tão sincera quanto sua beleza. (p.13 -14).

             A história prossegue. O jardineiro ficou triste com o desaparecimento da borboleta, restava uma esperança – ela havia depositado alguma coisa naquela folha do jardim e daquele segredo poderia surgir uma nova vida.

             E vem o terceiro momento da história. Certo dia o velho sábio recebeu uma visita inesperada de três cavaleiros, eles disseram que eram médicos e estavam a caminho da capital para atender ao chamado do rei. O príncipe, um rapaz de dezoito anos, estava muito doente. O velho jardineiro resolveu enviar um presente para o príncipe – um pote de vidro e dentro do pote um ovo de borboleta. Se não tivesse o poder de curar o jovem príncipe, aquela lembrança  poderia proporcionar-lhe alguns momentos de satisfação, disse o velho jardineiro aos cavaleiros. 

            E o resto? O resto se não é silêncio, é apenas murmúrio. O velho sábio, o príncipe e a borboleta irão se encontrar em algum lugar.

            

sábado, 3 de janeiro de 2015

O Gato Marquês



                UM GATO MUITO ASTUCIOSO E UM PASSARINHO INGÊNUO 

                        (Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB)

                        Gato que brincas na rua
                        Como se fosse na cama,
                        Invejo a sorte que é tua
                        Porque nem sorte se chama.
                        (Fernando Pessoa)

            Os antigos chamavam de “idade de ouro” a fase em que os homens, semelhante aos deuses, não sabiam o que era cansaço nem dor, todos levavam uma vida amena e pacífica. Esse tempo recebeu a denominação “idade do ouro” porque tinha a pureza, a riqueza e a eternidade do ouro.

            A literatura infantil é pródiga em livros que nos remetem à idade de ouro, e citamos como exemplos de paraíso infantis: o sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, o país de Tatipirun, de Graciliano Ramos, o engenho Laureano, poeticamente retratado por Marcus Accioly, em “Guriatã: um cordel para menino” e o engenho Corredor, palco de muitas histórias contadas pela velha Totônia e reunidas no livro de José Lins do Rego- “Histórias da velha Totônia”. Se a infância de José Lins do Rego não foi um paraíso, quando a velhinha aparecia no engenho e reunia os meninos no terraço da casa grande para contar histórias de animais sabidos, de príncipes, princesas e de reinos encantados, o menino ouvia essas histórias e se transportava para um mundo paradisíaco.

            A primeira história do livro de contos infantis de José Lins do Rego é “O macaco mágico”, uma versão do famoso conto de Perrault –” O gato de botas”. Esse conto aparece no livro “Contos populares do Brasil”, de Sílvio Romero, com a denominação de “O Doutor Botelho”. O folclorista Sílvio Romero afirma que “Doutor Botelho” é uma variante do Gato de botas, um conto registrado por Perrault, mas que existe também uma versão semelhante na África.

            Poetas populares, contistas, autores de livros infantis têm se debruçado sobre esse conto muito antigo e recriam versões que atraem leitores de todas as idades.  Ieda de Oliveira aproveitou a história do gato de botas e escreveu uma fábula moderna em que o gato bonzinho dos contos tradicionais passa a ser um vilão que gostava de devorar passarinhos. Com o título “As aventuras do Gato Marquês” (Ed. Globinho, 2014), ilustrações de Lúcia Brandão, vamos acompanhar a trajetória desse gato bem ladino.

Na história recriada por Ieda Oliveira, o gato e o passarinho se tornam amigos graças à astúcia de uma experiente coruja. Até o cachorro Rulfo, arredio a gatos, foi convencido pelo passarinho Mel que todos poderiam ser amigos.

O título do livro lembra a história do Gato de Botas e há referências ao famoso conto de Perrault, mas este conto/fábula passa por muitas transformações.  O Gato Marquês era metido a bonitão e se dizia neto do famoso Gato de Botas, era tudo invenção, o que ele gostava mesmo era de caçar e devorar passarinhos. Melro, chamado por todos de Mel, estava em perigo. O que fazer para salvar Mel das garras do famigerado gato? 

O gato manhoso e cheio de astúcias convidou o passarinho para dormir em sua casa, lá ele teria um abrigo seguro. A coruja que gostava muito do passarinho, acompanhou-o até à casa do gato. Depois de muita conversa jogada fora, o gato disse a coruja que já era tarde e todos precisavam dormir. A coruja se despediu do passarinho e do gato e chamou este para um particular – revelou que passara um veneno nas penas do passarinho e se o gato tentasse comê-lo morreria envenenado.  O gato passou uma noite horrível, estava faminto e não podia comer o passarinho.

Cada dia que se passava o gato ficava mais esfomeado e nada de comida, o passarinho ofereceu - lhe minhocas, insetos, mas o gato não queria saber dessas porcarias, sonhava em comer passarinhos e Mel inocente de nada desconfiava. 

Um dia, o passarinho convidou o gato para dar um passeio, quem sabe se ele não iria encontrar a comida desejada. Juntos empreenderam uma longa viagem à procura de alimento para o gato. E chegaram até à casa de uma menina muito boazinha que gostava de toda espécie de animais – passarinho, gato, cachorro. A essa altura, o gato e o passarinho já conviviam pacificamente. 

Interessante observar as ilustrações de Lúcia Brandão. A ilustradora representou, inicialmente, o gato com um olhar espantado, cheio de maldade,   à medida que o gato vai se transformando de mau para bondoso, o olhar vai se modificando,  passa a ter um olhar mais tranquilo, até o chapéu, que lhe dava ares do gato de botas, desaparece.
   
Esta divertida fábula procura mostrar o valor do diálogo e dá lições de tolerância.   O valor de uma amizade sincera é capaz de superar as diferenças.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Patrick Modiano e a literatura infantil



Patrick Modiano e a literatura infantil
(Neide Medeiros Santos – Leitora votante FNLIJ/PB) 


Permanecemos sempre os mesmos, e aqueles que fomos no passado continuam a viver até o final dos tempos.
(Patrick Modiano. Filomena Firmeza).

Patrick Modiano, escritor francês, nascido em Boulogne – Billancourt, comuna francesa situada nos arredores de Paris, foi o vencedor do Nobel de Literatura 2014. No meio literário já conquistou vários prêmios, entre eles o Grand Prix de Romance da Academia Francesa. Para o público infantil, escreveu “Filomena Firmeza” (Cosac Naify, 2014), com ilustrações de Sempé e traduzido para o português por Flávia Varella.
            Em seus livros, notadamente nos ficcionais, Modiano deixa transparecer fragmentos biográficos e históricos com o predomínio de temas que partem em busca da identidade, da incompreensão diante dos problemas sociais, da ocupação alemã na França. A figura do pai é constante em seus textos.
            O ilustrador Sempé, um mestre do cartum, é natural de Bordeaux, França.  Na escola era considerado displicente e muito distraído, estava sempre com um lápis na mão desenhando. Depois de várias tentativas de emprego, resolveu dedicar-se ao desenho e encontrou seu verdadeiro caminho. Para ilustrar “Filomena Firmeza”, Sempé desenhou Paris, com destaque para os locais frequentados por Filomena e seu pai, e apresentou alguns detalhes da cidade de Nova York.  
O livro de Patrick Modiano, além de proporcionar ao leitor um passeio pelas ruas e bairros de Paris, apresenta cenas da vida cotidiana desta cidade nos anos 1940, o convívio familiar entre um pai e sua filha. No que se refere à estrutura do livro, tudo é apresentado sob o olhar de um narrador autodiegético, um narrador de 1ª pessoa. A história é contada em dois tempos por Filomena  (menina em Paris e adulta em Nova York).  
O início do livro retrata o momento presente – Filomena está em Nova York e comenta que há neve na cidade, isso ela divisa da janela do seu apartamento situado na Rua 59. No capítulo seguinte, através da técnica do flashback, pai e filha estão em Paris, há um retorno de trinta anos.
 Vamos examinar, inicialmente, o espaço geográfico em que viviam o Sr. Georges e sua filha.
Filomena morava com o pai em Paris, sua mãe era uma bailarina americana, morou algum tempo em Paris, mas voltara para Nova York e continuava seu trabalho artístico. Escrevia regularmente cartas para o marido e a filha e esperava que eles viajassem um dia para Nova York para ficarem todos juntos.
O pai de Filomena, Sr. Georges Firmeza, era sócio da loja – “CASTERADE& FIRMEZA – Exp. Trans.”, situada na Rua d´Hauteville, nas proximidades da Gare du Nord.   O que significava Exp. Trans? O pai sempre foi evasivo quando Filomena perguntava o que queria dizer Exp. Trans.  Seria Expedições? Exportações? Trânsito? Transportes? O trabalho na loja era feito sempre à noite. Caminhões paravam em frente ao estabelecimento comercial e empregados conduziam caixas e mais caixas de mercadorias que eram guardadas nesse local.  Um dia a menina encontrou um caderno de registros com essas anotações: rádio, camisas, parafusos, calçados militares, geladeiras, furadeiras, motores elétricos e outros itens bem diversificados. Diante da insistência da filha para saber em que o pai trabalhava, ouviu esta explicação:  “Digamos que trabalho com pacotes”. (p. 26)
A escola que Filomena estudava ficava na Rua  “Petits Hôtels” e o pai acompanhava a menina no trajeto para a escola. Tudo girava em torno do 10º. “arrondissement” – trabalho do pai, escola de Filomena, estações de trem – Gare du Nord e Gare de L´Est, igreja Saint-Vincent–de-Paul.      
O Sr. Raymond Casterade era sócio de Firmeza na firma e a descrição que a personagem narradora faz do sócio do pai não é muito lisonjeira: “era um homem moreno, de olhos escuros e tronco muito comprido”, formado em letras,  gostava de dar lições de moral a torto e a direito, implicava com os descuidos gramaticais de Filomena. Dizia-se poeta e recitavas versos de sua autoria bem como poemas de outros poetas franceses. Versos e poemas enfadonhos.  
Mas, além de estudar, que outras coisas  Filomena fazia?
Frequentava uma escola de dança, certamente tinha pretensões de ser bailarina como a mãe.  A escola ficava na Rua Maubeuge e a professora era a  senhora  Galina Dismailova que mantinha um sotaque russo bem forte . É nessa escola de dança que Filomena conhece Odile, uma menina muito rica que convida Filomena e Sr. Georges para um coquetel de primavera. A festa seria realizada em sua própria casa. No dia marcado, pai e filha compareceram à festa, o ambiente era requintado e o Sr. Georges sentiu-se um pouco deslocado.  Filomena, talvez por ser criança, estranhou apenas a pouca atenção que os anfitriões deram a seu pai, estava muito feliz ao lado da amiga Odile. É nesse coquetel que Georges conhece René Tabélion, o único convidado que conversou com Sr. Georges Firmeza.  Desse encontro com Tabélion, surge a oportunidade do regresso  para Nova York.
O último capítulo do livro é um retorno ao presente. Filomena, acompanhada da filha, visita seus pais que moram no bairro de Greenwich Village. Enfim, agora estão todos juntos em Nova York.
O Sr Georges continua com “negociatas”. Antes, em Paris, agora, em Nova York.  Esse aspecto não fica bem esclarecido.  Pouco importa.  A vida continua e a história termina por aqui.
(Nota: Este texto vai para Célia Carvalho).